
Carlos Chagas
Depois de romper a proibio de deixar a baa da Guanabara, rumando para alto-mar e escapando dos tiros das fortalezas, o Tamandar vira para o Sul, pretendendo aportar em Santos. Presumiam o presidente da Repblica, Carlos Luz, seus ministros, deputados e oficiais da Marinha e do Exrcito embarcados, que poderiam resistir em So Paulo ao golpe desferido pelo ministro da Guerra, general Henrique Lott. Afinal, o governador Jnio Quadros participara da campanha presidencial contra Juscelino Kubitschek, apoiando Juarez Tvora.
Com todo o respeito, eram amadores os que navegaram na maior belonave da Armada. Porque na madrugada daquele longo dia 11 de novembro de 1955, o general Lott j tomara providncias para contar com a unidade do Exrcito em So Paulo, em favor da legalidade e da posse de JK, em janeiro.
A sede do governo paulista era o palcio dos Campos Elseos e quando Jnio acordou e abriu a janela, deparou-se com tanques, baterias, caminhes verde-oliva e montes de soldados ocupando os jardins. Fechou imediatamente a janela, comeou a informar-se e verificou que, se resistisse, estaria deposto. Diz a lenda que no demorou em proclamar estou com o Lott.
De bordo do Tamandar, Carlos Luz passa um radiograma ao governador, anunciando estar chegando brava e patritica terra paulista para resistir pela legalidade atropelada pelo ministro da Guerra. A resposta equivaleu mais ou menos como um no vem que no tem. Santos estava tomada por tropas do Exrcito e as fortalezas prontas para disparar sobre o navio, cujos comandantes perceberam a inocuidade de qualquer tentativa de aportar.
O presidente interino, naquela tarde j avanada, ouviu pelo rdio que no era mais presidente. O general Lott dera ultimato ao Congresso para votar imediatamente o impedimento de Carlos Luz e determinar que Nereu Ramos, vice-presidente do Senado, fosse o novo chefe do governo. De bate-pronto, deputados e senadores cumpriram a ordem.
Fazer o qu? - indagam os abandonados pasageiros do Tamandar. As caldeiras, defeituosas, no garantiam navegao at o Uruguai, como alguns sugeriram. Acionar os canhes tambm no dava. De nada adiantaria ficar contra tudo e contra todos, j que o Congresso e os governadores estaduais solidarizavam-se com Lott.
Carlos Luz d a palavra final: voltar para o Rio. Assim acontece e no domingo ensolarado, com a praia cheia, os banhistas do Posto Seis assistem inusitado espetculo: o Tamandar, aproxima-se perigosamente das margens do Forte Copacabana, com toda a marujada formada no convs, farda branca e posio de sentido. Os poderosos alto-falantes do navio, voltados para o quartel e para a praia, entoam o Cisne Branco, clssico hino cultivado pela Marinha. Seno um ato de provocao, pelo menos uma revanche que o Exrcito ignorou.
O cruzador entra outra vez na baa da Guanabara e vai ao cais do Arsenal. L diversos deputados e senadores aguardavam, como Afonso Arinos e Tancredo Neves, prontos para subir a bordo e garantir a incolumidade dos companheiros. Temiam que o general Lott mandasse prender a todos, mas o ministro da Guerra respeitou a Constituio e a imunidade parlamentar. Carlos Luz foi para seu apartamento, acompanhado de alguns fuzileiros navais, anunciando que cedia ao imprio das circunstncias e que no dia seguinte, segunda-feira, discursaria na Cmara, dando sua verso dos acontecimentos. Quantos o ouviram respeitaram seus pontos de vista, pois o j ex-presidente da Repblica negou de ps juntos estar envolvido em golpes para impedir a posse de Juscelino Kubitschek. Mas estava.
O nico deputado que no foi para casa, Carlos Lacerda, acompanhado por Afonso Arinos, pediu asilo na embaixada de Cuba, imediatamente concedido, embarcando depois para aquele pas e em seguida para os Estados Unidos, onde permaneceu alguns meses. Voltou para reassumir seu mandato e tornar-se o maior crtico de Juscelino, j ento presidente da Repblica.
Os oficiais de Marinha que desembarcaram no foram molestados, a comear pelo almirante Pena Botto, que pede passagem para a reserva. Exceo, mesmo, foram os coronis do Exrcito integrantes da aventura do Tamandar. Ainda no cais, foram presos por ordem do general Lott e conduzidos para as dependncias do CPOR, em So Cristvo, onde j se encontravam detidos alguns oficiais declaradamente contrrios posse de JK. Respondero a inquritos mas sero lotados em quartis afastados do Rio, nas fronteiras. O nico a no aceitar aquela acomodao tinha sido o coronel Golbery do Couto e Silva, que preferiu passar para a reserva, promovido a general, como dispunha a lei.
CHEIRAM MAL…
De toda a maratona, ficou o comentrio de Tancredo Neves, que depois de percorrer o navio em busca de colegas parlamentares para acompanh-los s residncias, declarou maliciosamente: essas revolues envolvendo navios de guerra cheiram mal. Referia-se ao fato de que nos trs dias em que se encontravam no mar, os civis vomitaram todas as tripas, deixando nos camarotes e corredores um odor inqualificvel.
Essa foi mais uma revoluo brasileira sem sangue, graas ao destino. No houve confronto blico. A Aeronutica ficou impotente, mesmo em maioria contrria posse de Juscelino. Suas bases foram cercadas por tropa do Exrcito, com instrues para abater qualquer avio que ousasse levantar vo. Quando na manh do dia 11 o brigadeiro Eduardo Gomes tentou levar uma esquadrilha do Rio para So Paulo, viu-se dissuadido pelos canhes verde-oliva. Limitou seu protesto a uma proclamao que apenas uma rdio carioca divulgou, pois as outras j estavam sob interveno do ministro da Guerra. Alias, naqueles dias a censura voltou imprensa, pela primeira vez desde a democratizao de 1945. Coronis do Estado-Maior freqentaram por algumas semanas as redaes de jornal, mesmo as insuspeitas favorveis legalidade. Uma das ordens de censura era meio cmica: proibido escrever general Lott. Tem que ser general Henrique Lott. Por que? Porque na composio, algum prfido jornalista da Tribuna da Imprensa passou a embolar as palavras e por um dia ou dois lia-se generalotte…
A crise teve desdobramentos. Uma semana depois de Nereu Ramos haver assumido, com o pas sob estado de stio, o presidente licenciado, Caf Filho, ficou subitamente bom das complicaes cardacas, deixou o hospital onde estava internado, foi para casa e anunciou que no dia seguinte reassumiria a presidncia da Repblica. Voltava o temor de que, reassumindo, demitiria o general Lott e reacenderia a luta contra a posse de Juscelino.
Com tanques e canhes o ministro da Guerra mandou cercar o quarteiro de Copacabana onde Caf tinha apartamento. Ningum entrava, ningum saa. Fez mais o general Lott: foi visitar Caf Filho, em sua modesta residncia. Apelou para que no reassumisse, sua presena no palcio do Catete reavivaria a crise. O presidente licenciado agradeceu a visita mas manteve a disposio. Resultado: em menos de 24 horas o Congresso votou o impedimento de Caf, claro que de olho nas baionetas. Ele impetrou habeas-corpus junto ao Supremo Tribunal Federal para assumir, o recurso no foi examinado. Quem melhor definiu a situao foi o deputado Milton Campos, indagado sobre como votaria caso fosse ministro do Supremo: Nego porque pede. Ora, se um presidente precisa de habeas-corpus para governar, porque no mais presidente… (final)