
Boechat dizia que a política era dominada por “quadrilhas”
Carlos Newton
Em fevereiro de 2013, o jornalista Ricardo Boechat propôs no Jornal da Band que o povo não deveria ir às urnas. A historiadora Clarinda Béja, professora de História pela UFRJ e com doutorado em Idade e Média e Revolução Francesa pela Sorbonne, não aceitou esse procedimento do âncora, por ter feito propaganda contra um direito de cidadania que é votar. A democracia, segundo a mulher do advogado Jorge Béja, só se fortalece com o pleno exercício do voto. Portanto, Boechat teria dado um mau conselho aos brasileiros.
Então, Clarinda Béja enviou a Boechat uma mensagem por e-mail, dando-lhe um delicado puxão de orelha. E o jornalista respondeu como um longo texto em que defendeu sua posição a favor do não-voto.
DISSE CLARINDA – A historiadora argumentou que o brasileiro não é um cidadão-pleno, ainda, porque não lhe é dada, através da Educação, a oportunidade de chegar à plenitude da cidadania.
“O que se faz com a Educação, nos municípios e estados – e disso dou testemunho – é um verdadeiro crime, que teve início com os militares em 1969 com a Lei 5.692 (Lei da Educação). Aí temos o começo da desqualificação do professor e da Escola para a ascensão cultural, social, política…. de cada indivíduo.
Imagine que o cidadão-eleitor ao ver que os candidatos são verdadeiros marginais e, por isso, deixasse de votar, eles não deixariam de ser eleitos porque em seus redutos eleitorais eles são poderosos e controladores dos votos e dos eleitores” – afirmou Clarinda Béja, acrescentando:
“A legislação eleitoral precisa ser mudada, sim. Vamos eleger pessoas que sejam dignas e nos representem como pessoas de bem. Não tenho esta sua certeza de que a abstenção (não-voto) poderá contribuir para modificar o caráter dos políticos. Mesmo com essa “choldra” que temos, infelizmente, há os que aparentam correção e honestidade e vocação pública, ainda que em muita menor porção”.
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NÃO-VOTO, UM ATO POLÍTICO CONSCIENTE
Ricardo Boechat
É covardia do estimado amigo convocar-me para um debate com a Professora Clarinda… Sou um jornalista sem escola, que nem o Segundo Grau concluiu, lá nos anos 60…
Minha pregação pelo não-voto é antiga, assim como minha convicção de que esse é um ato político legítimo e consciente. Não se trata de alienação, de negação à democracia construída pelo sufrágio universal, direto e secreto. Ao contrário: trata-se de lançar mão daquela que talvez seja, realisticamente, nossa única arma ao alcance da mão.
O fato, Professora, é que o exercício desse “direito” (aspas impostas pela obrigatoriedade legal de exercê-lo, num paradoxo semântico difícil de explicar) em nosso país deixou de ser a forma de intervenção da sociedade na condução do Estado e da Nação e se transformou, pela combinação de interesses das organizações partidárias, em mera legitimação de práticas tão escusas, sistemáticas, predominantes e notórias que dispensam exemplos.
SÃO QUADRILHAS – Não sou contra o voto, nem contra a democracia. Sou contra o voto que essa nossa realidade, essa nossa ‘legislação política’, nos impõem usufruir. Para as quadrilhas perenizadas no comando da política nacional – e, através dela, senhoras absolutas do Estado, seus poderes e recursos – o brasileiro não é um cidadão. Está reduzido à mera figura de votante. Nosso voto não decide nada, Professora, além da validação a cada dois anos do status ao qual parecemos habituados.
Enquanto nações evoluem nessa relação, no sentido de construir uma cidadania plena através do voto, nós sequer conseguimos fazer valer questões elementares, primárias, quase infantis, como a de impedir que marginais notórios ocupem postos de alto comando na estrutura parlamentar.
Canadenses, noruegueses, americanos e sei lá mais quantos votam não apenas no candidato, mas, a cada pleito, num conjunto de propostas que a própria sociedade decide definir.
TEMAS POLÊMICOS – Aborto, legislação ambiental, pena de morte, cassação de mandatos, corte de árvores, distribuição de verbas, licenciamento de veículos, construção de estradas… do mais grave e complexo ao mais prosaico, é o cidadão quem diz o que quer, quando quer, como quer.
Prego o não-voto na utopia de que, se um dia lhes negarmos esse oxigênio, se lhes cassarmos coletivamente a legitimidade, então, talvez, quem sabe, algo aconteça no sentido de se recomeçar, de se reformar, de se evoluir.
A VOZ DAS RUAS – O que mais, Professora, pode levá-los a reformar a Legislação Política? O que mais pode levá-los a temer a voz das ruas? O que mais poderá convencê-los de que somos os cidadãos, de fato e unicamente, os patrões dos políticos e dos governantes?
A Senhora talvez enumere alguns avanços. Eu lhe perguntarei quanto tempo levaremos para conquistarmos outros. No momento, por exemplo, um desses ‘progressos’ está sendo a votação do projeto que põe fim ao pagamento do 14º e do 15º salário aos deputados e senadores.
NÃO-RUPTURA – Não sei o quanto a consolam tais ‘avanços’. Mas, a mim, apenas revoltam. Talvez lhe pareça parte dos ganhos da nossa prática partidário-eleitoral as presenças de Renan Calheiros na presidência do Senado e de mais um Alves na presidência da Câmara. Mas, a mim, apenas afrontam. Quero mais do que isso, Professora. E sei que é possível. Basta olhar para o Mundo à nossa volta.
Minha ladainha vai continuar e, pelo que tenho acompanhado nas apurações, muitas outras vozes vem se elevando na mesma oração. Repito: não sei se essa ruptura nos levará ao que queremos. Mas, sem sombra de dúvida, a não-ruptura nos tem mantido onde não queremos.