Vivemos mergulhados numa cultura hedonista. O prazer imediato, veloz, fugaz, abafa e reprova silêncios e esperas. O culto à vitória e ao sucesso condena os perdedores, os losers da tradição ianque, ao esquecimento, ao deboche. Com esse ambiente avassalador, não é feito menor o documentário Comício a favor dos náufragos, do Geneton Moraes Neto. Em cima do eterno trauma nacional do Maracanazo, Geneton recupera a dimensão esportiva da final da Copa do Mundo de 1950, humanizando protagonistas e retirando-os do pântano trágico em que uma derrota os afogou. Mais uma tentativa de sair do sofrimento e cair no entendimento. Barbosa e Bigode, réus de um crime que não cometeram, ganham cara e voz. Alcides Ghiggia recusa o véu do carrasco e fala de amizades paridas no drama encenado no dia 16 de julho de 1950, grama nova, desejos antigos. A trilha sonora é um magnífico poema de Walt Whitman, do qual seleciono alguns trechos. Fechem os olhos e imaginem a leitura na voz bebum beleza do Paulo César Pereio.
Não toco hinos só para os vencedores consagrados
Toco hinos também para as pessoas batidas e assassinadas.
Você já ouviram dizer que ganhar o dia é bom ?
Pois eu digo que é bom também perder:
Batalhas são perdidas com o mesmo espírito com que são ganhas.
Eu rufo e bato o tambor pelos mortos
E sopro nas minhas embocaduras o que de mais alto e jubiloso posso por eles.
Vivas àqueles que levaram a pior !
E àqueles cujos navios de guerra afundaram no mar !
E a todos os generais das estratégias perdidas,
Que foram todos heróis !
E ao sem número dos heróis maiores que se conhecem !
NO SISMÓGRAFO DA VIDA
Quando começa um evento ? Um terremoto, por exemplo. Será que começa apenas quando as placas tectônicas se movimentam, balançando a superfície ? Claro que não. Ainda não há ciência que consiga flagrar o momento inaugural da cadeia de acontecimentos que leva os sismógrafos a detectarem o fenômeno. O mesmo vale para a vida em sociedade. Quando começou o Maracanazo ? No chute de Ghiggia ? No ufanismo leviano da imprensa ? No oportunismo dos políticos ? Na subestimação do adversário ? Nos acasos do futebol ? Tudo isso e mais alguma coisa ? Impossível determinar. Se pudesse arbitrar, diria que o início aconteceu exatamente no dia 14 de outubro de 1948. Naquele dia, uma concorrida assembleia convocada pela Mutual Uruguaya de Futbolers Profesionales decidiu por uma greve que paralisou o campeonato local. Os jogadores, que viviam num regime profissional apenas de fachada, reivindicavam uma alforria da escravidão de fato a que estavam submetidos.
Qualquer contrato assinado por um jogador, mesmo que ele fosse menor de idade, o condenava a pertencer ao clube enquanto durasse sua carreira. Não era obrigatório consultá-lo caso houvesse interesse de outro clube pelo seu trabalho e se negociasse uma transferência. Caso concretizada, o jogador não tinha ganho financeiro no negócio. Os contratos podiam ser rompidos unilateralmente, bastando para isso que os dirigentes usassem critérios subjetivos e sem mediação judicial. Quando se lesionava, o jogador não tinha qualquer tipo de proteção. Talvez a maior aberração fosse a esdrúxula cinco citaciones. Um atleta sem contrato que estivesse jogando por um clube e fosse citado pelo menos 5 vezes pela imprensa no intervalo de um ano, era considerado automaticamente vinculado ao clube. Em outras palavras: virava propriedade privada do clube.
A greve, claro, encontrou forte resistência dos cartolas. Os do Nacional, bicampeão uruguaio em 1946 e 1947, chegaram a insinuar que o movimento era orquestrado pelo Peñarol para evitar o tricampeonato. Os patrões tentaram, desde o início, esvaziar o movimento, usando as táticas usuais. Chamaram fura-greves da Terceira Divisão para simular jogos oficiais. Apostaram na fome como aliada: o tempo faria os jogadores “recuperarem a razão”, asfixiada sua fonte de renda. Nada funcionou. Os grevistas criaram formas de arrecadação, que iam de bailes a partidas em campinhos de todos os tamanhos (onde jogavam os futuros campeões mundiais de 1950). Jornalistas de peso apoiavam o movimento, no que eram acompanhados por artistas famosos. Ah, a velha tradição de combatividade do povo uruguaio ! Sob clima de intensas pressões da Fifa, da Confederação Brasileira de Desportos e da Associação Uruguaia de Futebol, os jogadores se mantiveram firmes, reivindicando condições dignas de trabalho. Em meio à tempestade, surgiu Obdulio Varela.
A LIDERANÇA
Mulato semianalfabeto, operário da construção civil, Obdulio exercia uma forte e intuitivamente democrática liderança sobre os jogadores. Foi ele que desafiou os que o jornalista uruguaio Franklin Morales chamou de “demônios aniquiladores do medo”. Costumava dizer que “aunque le parezca mentira, el fútbol es uma cuestión mental”. Passionalmente ligado ao Peñarol, teve participação decisiva em todas as etapas da greve. Vendia bônus na avenida 18 de Julio, centro de Montevidéu, bailava para arrecadar fundos de sustentação da greve e jogava nas várzeas profundas de seu país, com a única certeza de que estava agindo certo. A greve terminou no dia 3 de maio de 1949, quase sete meses depois de iniciada.
A maior parte das reivindicações foi atendida, injetando altas doses de autoestima no que seria a coluna vertebral da celeste olímpica. Obdulio, que os dirigentes tentaram marginalizar depois da greve (trabalhador grevista não é flor cheirosa para os vasos patronais), emergiu como líder inconteste dos companheiros que ganhariam, menos de dois anos depois, a Copa Jules Rimet. Seu gesto depois do gol de Friaça na final, pegando a bola no fundo da rede e correndo para o bandeirinha a reclamar um impedimento inexistente, esfriou o entusiasmo brasileiro e deu tempo para uma respirada da celeste. Gesto que Didi imitaria em 1958, contra a Suécia. O líder respeitado, que defende sem conciliações os interesses dos companheiros, que articula saídas para os conflitos sem descaracterizar suas posições. Esse era Obdulio, um dos grandes do futebol de todos os tempos.
Diz-se que a tragédia do México é estar longe de Deus e perto dos Estados Unidos. Talvez a tragédia do Brasil, futebol incluído, seja uma mistura de empáfia e ignorância, que nos torna distantes da história dos vizinhos. Começamos cortejando o francês, depois o inglês (hoje, passei por uma loja em Ipanema onde se lia help wanted; que chique, hem ?), amanhã, quem sabe, o mandarim. Espanhol, para quê ? Penso nisso enquanto leio o muito bem-vindo movimento Bom Senso FC. Batendo de frente com interesses poderosos, da CBF à rede Globo, jogadores brasileiros reivindicam direitos elementares: receber salários em dia, 30 dias de férias, voz ativa na definição dos calendários anuais. A maior parte da imprensa esportiva, de perfil conservador, não dá a cobertura que o fato merece. Muito menos apoia as demandas, aliás já atendidas para a maioria dos trabalhadores, depois de muita luta. Os artistas, bem, esses andam muito preocupados com suas biografias, autorizadas ou não. Cadê a solidariedade do Politheama, scratch de peladeiros comandado pelo Chico Buarque ? Por falar nisso, cadê o Chico nessa hora?
Os técnicos estão mudos e assim permanecerão. Os “professores” dão aula de subserviência e mereciam uma resposta pinkfloydiana: We don’t need no education/We don’t need no thought control/Hey, teacher, leave them kids alone (é them mesmo). Está faltando uma liderança que seja reconhecida por seus pares, envolva outros setores na luta, incendeie a imaginação do povo com a ideia de um futebol democrático e sem vinculações com os governos e os grandes interesses comerciais. Temos um péssimo prontuário de abandono e exploração dos jogadores profissionais.
Sandro Moreyra, que faz tanta falta quanto João Saldanha, lembrou alguns casos vergonhosos. Vevé, ídolo do Flamengo, morreu na miséria, com enterro custeado por amigos. Heleno de Freitas morreu esquecido numa enfermaria de Barbacena. Pascoal, jogador do Botafogo, se contundiu e, sem poder jogar e sem receber os salários, se suicidou. Maneca, muitas vezes campeão pelo Vasco, agonizou por quinze dias num hospital, sem que nenhum dirigente do clube tomasse uma atitude. A lista é imensa. Falta um Obdulio Varela no Brasil. Que unisse os jogadores. Que mostrasse a importância do exemplo para as categorias de base. Que não basta imitar penteados ridículos para ser jogador e cidadão. Enfim, p’ro dia nascer feliz.