
Fernando Orotavo Neto
A liberdade de imprensa (freedom of the press), em todas as suas formas, alçada à categoria de direito fundamental do cidadão pela Constituição da República (art. 5º, incisos IX), tem por finalidade a formação de cidadãos conscientes, a transparência e fiscalização das gestões públicas, a livre circulação de informações e ideias, em suma e em síntese, o fortalecimento da democracia e do Estado de Direito. Sem liberdade para opinar (CF, art. IV) e imprensa livre, o cidadão perde o direito de ser informado e o seu poder de tomar decisões resta diminuído, tornando-se refém do status quo.
Talvez por isto, num mundo cada vez mais globalizado, onde as notícias veiculadas são difundidas em questão de segundos, numa velocidade impressionante (on line), para um número cada vez maior de indivíduos, quase ninguém ouse questionar o poder da imprensa – qualificada, até mesmo e por vezes, como “o quarto Poder da República”.
A força e a influência que a opinião publicada produz em relação à opinião pública é tão ostensivamente gritante, no tocante à formação desta, que, apenas para citar um exemplo, na década de 60 nos EUA, no auge da Guerra Fria e da “caça aos comunistas”, a imprensa julgava e condenava os cidadãos que não interessavam ao regime, relegando para o Judiciário a função menor de referendar o veredito antecipado da opinião pública. Vigia a época do chamado trial by media (julgamento pela imprensa) ou pretrial (pré-julgamento), ocasião em que muitos perderam sua liberdade sem direito a um processo justo (fair trial). Repórteres pensavam que eram juízes; editores de jornais tinham certeza que eram Ministros da Suprema Corte.
O CASO DA OGX
Tendo a história por minha eterna conselheira e lendo as recentes notícias sobre o pedido de recuperação judicial da OGX, que me permitiram tecer algumas reflexões sobre a atuação inerte e omissa da CVM (Comissão de Valores Mobiliários) no episódio, penso que esse triste caso da vida financeira nacional deveria abrir oportunidade para que também a imprensa, ou grande parte dela, fizesse uma autoanálise das informações difundidas sobre as empresas X, no período anterior e posterior à queda, como sói acontecer naquelas fotos de “antes e depois” postadas por simpáticos gordinhos que emagrecem.
É natural que a proximidade com o Poder, na busca pelo furo de reportagem, acabe gerando notas recomendadas (ou “rec”, como são chamadas no jargão dos assessores de impressa), notas “chapa branca”, de interesse da autoridade constituída, prefeitos, governantes e chefes de Estado, que tem interesse de vê-las publicadas. O famoso “é dando que se recebe”, não é privilégio da política ou dos políticos. É claro que há jornalistas sérios, em sua grande maioria, que estão comprometidos com a veracidade da informação e se preocupam com os fatos que divulgam e põem em circulação, checando dados, fontes e, mais importante que isso, ouvindo o outro lado – o que se afigura imprescindível, diria eu. Há outros jornalistas, porém, com “j” minúsculo, que se deixam seduzir pelo jogo do poder, e passam a servir, escancaradamente, aos interesses dos governantes de ocasião, cujo desígnio maior é formar a convicção da opinião pública a seu favor. Parecem hipnotizados pela vetusta fórmula segundo a qual “aconteça o que acontecer, esteja onde estiver, estarei sempre do lado do mais forte”.
O EXEMPLO DE EIKE
A ascensão e queda de Eike Batista é um real exemplo dessa prática. Sendo interesse do Governo justificar os empréstimos milionários destinados às empresas X, criou-se, através da imprensa, o mito Eike Batista; o homem que, tal como Midas, em tudo que tocava virava ouro. As notas diárias sobre as empresas e seu comandante só prometiam pujança, novos investimentos, empregos em profusão. Parecia que Eike Batista havia criado o capitalismo, tamanha era a exposição benigna da sua figura nos veículos de comunicação. Havia mesmo jornalistas que todo santo dia enalteciam em suas colunas “Eike Sempre Ele Batista”, noticiando qualquer movimento do empresário, no intuito de afagar seu ego empresarial e demonstrar que o poder público fazia muito bem em tê-lo como parceiro de negócios.
É claro que tamanha publicidade opressiva fez com que milhares de pessoas comprassem ações da empresa e nela apostassem cegamente, pois as notícias publicadas e veiculadas em jornais e revistas ainda possuem presunção de veracidade, já que o povo sempre acredita que “onde há fumaça, há fogo”, para repetir colorida e significativa expressão popular.
O curioso, nisso tudo, é que, hoje, depois da queda, os mesmos jornalistas que enalteciam o vitorioso empresário trocaram a máscara, só noticiam seus tropeços, suas dificuldades, retratando-o como o engodo empresarial do século; esquecendo-se, como num passe de mágica, todos os providenciais elogios que lhe renderam em tempos recentes, numa tentativa grotesca, conquanto visível, de espiarem as suas culpas.
Eike Batista pode até não ser o Warren Buffet brasileiro; mas certamente não é um Kraken, monstro lendário e colossal que pertencia ao folclore nórdico. Assim como qualquer empresário, vive de acertos e erros – e se não fosse sua gigantesca exposição midiática, talvez seus erros não tivessem tomado proporções sobremaneira dantescas.
RESPONSABILIDADE
Partindo da premissa de que toda outorga de poder corresponde ao nascimento de um dever de igual força, que lhe é correlato e indissociável, pergunto-me qual é a parcela de responsabilidade da imprensa na divulgação inopinada de notas recomendadas?
Seria, portanto, muito interessante que a imprensa se propusesse a pensar seriamente no assunto e fizesse uma autocrítica legítima, para se assegurar de que, daqui para frente, as notícias divulgadas sejam sempre as mais fidedignas possíveis, de modo que a liberdade de comunicação e de imprensa se prestem a cumprir a nobre finalidade para a qual estes institutos foram criados, sem muito salseiro ou salamaleques – ainda mais em ano pré-eleitoral quando os governantes estão ávidos por fazer circular informações sobre seus programas sensacionais e feitos miraculosos, na clara intenção de ganharem um votinho aqui, outro acolá. Ou alguém não se lembra do Senador Demóstenes Torres, queridinho da mídia, preferido dos repórteres políticos para entrevistas, e alçado por eles à condição de paladino da justiça e da ética?
A verdade, nua e crua, é que se a mídia não primar por sua própria independência, mantendo uma distância regulamentar e estratégica nas relações profissionais que conserva com o poder público, o cidadão, destinatário final da informação, já não mais poderá diferenciar a tênue linha que separa uma notícia veraz e séria de uma notícia recomendada ou “chapa branca”; restando-lhe apenas, ao fim e ao cabo, constatar o triste paradoxo de que, não raramente, por motivos estranhos, confusos, intrigantes, opacos e inconfessáveis, a imprensa que afaga é a mesma que apedreja (D’aprés Augusto dos Anjos: A mão que afaga é a mesma que apedreja/Se a alguém causa inda pena a tua chaga; apedreja essa mão vil que te afaga; escarra nessa boca que te beija).
Fernando Orotavo Neto é jurista, com várias obras
publicadas de Direito, e professor de Processo Civil