O estranho caso da mãe que queria registrar os filhos com os nomes de Elegebetê e Queiamais…

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Charge do Duke (O Tempo)

Jorge Béja

É verdade que, ao longo de quatro décadas seguidas advogando sem parar, me tornei muito conhecido. Não, por méritos próprios, por talento, por sabedoria jurídica e, sim, pelas causas rumorosas que defendi e por outras inéditas.

Dentre as inéditas, a condenação do Estado, repetidas vezes, a indenizar a morte de detentos nos presídios, numa época da ditadura militar, na década de 70. Também as ações na Justiça de defesa do consumidor, quando nem se cogitava na criação de uma lei, de um código específico para a defesa de todos nós consumidores, e que só veio existir no início da década de 90.

JURUNA E DALAI LAMA – Entre as muitas inéditas, vou relatar apenas duas, a pedido do editor da Tribuna, jornalista Carlos Newton. Uma das mais rumorosas foi o habeas corpus que impetrei no extinto Tribunal Federal de Recursos (TRF).

Sozinho, por conta própria, fui a Brasília e defendi o direito do então cacique Mário Juruna – então tutelado pelo Estado Brasileiro – de ir participar do Tribunal Bertrand Russel, instalado em Roterdam, na Holanda, para debater a questão dos povos indígenas do mundo inteiro. O TRF concedeu a ordem e Juruna viajou.

Outra causa inédita foi outro habeas corpus, que dei entrada no Superior Tribunal de Justiça, em favor de Tenzin Guiatzu, o 14º Dalai Lama. Sem que ninguém me pedisse e sem medo de enfrentar o governo brasileiro que cedera à pressão da China, fui lá e o STJ ordenou que o governo brasileiro desse o visto de entrada no Brasil para que o líder tibetano e sua comitiva participassem da Eco-92. E todos viajaram para o Rio de Janeiro. A China tinha condicionado sua participação no evento desde que o Dalai Lama não estivesse presente.

UMA ESTRANHA QUESTÃO – Mas nunca poderia imaginar que aparecesse uma questão ainda mais inusitada. Agora, em 2022, exaurido de tanta dor que absorvi de causas indenizatórias que defendi (Bateau Mouche, 55 mortos, Chacina da Candelária, 11 meninos mortos, Queda do Elevado Paulo de Frontin, 29 mortos, Palace II de Sérgio Naya, Chacina de Vigário Geral….), uma jovem mãe foi me procurar no escritório, mas eu estava em casa.

De lá ela me telefonou e disse que seu avô falava muito bem de mim e que era meu fã. Que ele sempre me ouvia nos debates populares do programa Haroldo de Andrade, na Rádio Globo etc. E essa jovem mãe (23 anos) queria que a defendesse numa causa que, de pronto, entendi melindrosa, sutil, delicada.

Num longo telefonema, ela contou o motivo que a levou a procurar o meu escritório. Disse que, há quatro meses, teve gêmeos bivitelinos. E queria que eu entrasse na Justiça com uma ação contra o oficial do Registro Civil que negou registrar os recém-nascidos com os nomes que ela escolheu: Elegebetê para a menina, e Queiamais, para o menino.

COM BASE NA LEI – Disse a ela que, embora a questão fosse de ordem subjetiva, o oficial tinha o amparo legal para negar os registros.

Expliquei que a Lei 6.015, de 1973 (Lei dos Registros Públicos) diz que os oficiais do registro civil não registrarão prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores. Está no artigo 55.

Se os pais querem chamar a criança de forma incomum, faz parte da função dos oficiais do cartório indagá-los sobre a origem e o significado do nome. Se os motivos não forem razoáveis, os oficiais podem negar o registro. Ela não aceitou minha explicação. Foi quando prossegui e dei exemplos.

NOMES INACEITÁVEIS – Disse a ela que PTB eram as letras iniciais de um partido político, o Partido Trabalhista Brasileiro. Que seria razoável que um oficial do Registro Civil recusasse fazer o assento de nascimento de uma criança com o nome Petebê. Que OSB eram as letras iniciais da Orquestra Sinfônica Brasileira e ainda da Ordem de São Bento, dos monges beneditinos. Eventual recusa de um oficial do Registro Civil em assentar como Oessebê o nome de uma criança também seria compreensível.

Disse-lhe, delicadamente, que os dois nomes que ela escolheu para os filhos não eram nomes próprios, nomes de pessoas humanas, mas junção de letras de uma sigla identificatória de grupos sociais. Ainda assim, não a convenci.

Minhas explicações, ainda que dadas com carinho e pausadamente, não foram aceitas. E a jovem me respondeu que iria procurar outro advogado ou mesmo a Defensoria Pública. Nos despedimos e desligamos o telefone, delicadamente. Nenhum de nós ficou aborrecido com o outro. Mas que este fato, inédito e surpreendente não me sai do pensamento, não sai mesmo.

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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG
O jurista Jorge Béja me contou esse episódio e logo lhe sugeri que escrevesse um artigo. Béja se recusou, mas insisti, pedindo que aproveitasse e lembrasse outras causas estranhas que defendeu na Justiça, e ele então concordou. Agora, após ler o artigo, fiquei imaginando como o oficial do cartório reagiria se lhe fosse pedido o registro de um menino com nome de Efeagacê… (C.N.)

14 thoughts on “O estranho caso da mãe que queria registrar os filhos com os nomes de Elegebetê e Queiamais…

  1. 1) Na qualidade de budista, há 54 anos, agradeço ao Dr. Béja pela iniciativa no quesito Dalai Lama. Parabéns também pelos outros casos que defendeu e por sua vida dedicada ao Direito. Meu sogro e irmão também são advogados. E a sobrinha/afilhada segue os mesmos passos como estudante universitária.

    2) Coincidência ou não, hoje, segunda-feira de carnaval, a livraria do Largo do Machado, RJ, estava aberta e comprei, para comemorar, o livro do meu professor Dalai Lama, “A Prática da Meditação Essencial”, uma reunião de palestras que ele proferiu na histórica Abadia de Westminster, em Londres.

    3) E nestes tempos de tristes guerras cito a tradução de um famoso mantra que no final diz, pág.47, Sutra do Coração:

    4) “Assim, vá, vá mais além, vá totalmente além, crie raízes na Iluminação”.

      • Prezado Antonio
        Sugerido por meu genro, pouco a pouco iniciei a conhecer a vida e obra de Buda. Amanhã comprarei “A Prática da Meditação Essencial”.
        Fraterno abraço.
        Fallavena

        • 1) Amigo Fallavena, vez por outra lembro daquele memorável almoço no restaurante da Estação dos Bondinhos em Santa Teresa, quando estivemos presentes nosso bom Editor CN e alguns colaboradores/comentaristas.

          2) Na ocasião, vc nos presenteou com um livro seu sobre Educação e lindas pastas a tiracolo.

          3) Abraço forte xará gaúcho !

          • Antonio, vou localizar fotos e mandarei para arquivos da TI. Se tudo der certo, este ano o Rio não escapará de minhas viagens, E ai almoço e um evento nos fará debater muito.
            Fraterno abraço.
            Fallavena

      • Antonio Rocha e Antonio Fallavena. No dia anterior à chegada de Sua Santidade o Dalai Lama, um grupo de budistas foi até meu escritório. Primeiro, agradeceram muito. Depois me pediram uma sugestão do local para hospedar o líder tibetano e sua comitiva.

        Sugeri o Mosteiro de São Bento.. Eu era ex-aluno e conhecia o Dom Abade e outros monges, já idosos mas ativos.

        E todos rumamos da Rua Acre, onde até hoje fica meu escritório, para a Rua Dom Gerardo. E a pé subimos a colina. Chegados na portaria do mosteiro. O porteiro ainda era o mesmo do meu tempo de ginásio e científico.

        Todos entramos. Caminhamos juntos pelos pórticos da parte interna do Mosteiro e fomos recebidos pelo Dom Prior, que eu não conhecia. Explicamos tudo. Dom Prior foi atenciosíssimo com todos nós.

        Mas lamentou não poder hospedar o Dalai Lama e sua comitiva. Isto porque o Dom Abade estava gravemente enfermo em sua cela e a movimentação seria intensa por causa da presença do líder tibetano. Dom Prior ainda lembrou que a hospedaria era uma das muitas missões e obrigações deixadas por São Bento. Mas naquela circunstância não seria recomendável.

        Foi quando me lembrei de Dom Eugênio Salles, com quem sempre defendi a população carcerária do Rio, junto com o padre Bruno Trombeta.

        Assim que os budistas pediram Dom Eugênio concordou imediatamente. E Tenzin Giatzu e sua comitiva ficaram hospedados no Sumaré. E foi do Sumaré que recebi o chamado para ir conhecer o Dalai Lama. Fomos, minha esposa e eu. E juntos, nós três conversamos muito e em dano momento SS o Dalai Lama se levantou e colocou uma de suas mãos sobre minha cabeça e a outra sobre a cabeça da minha esposa. E durante uns 5 minutos ficou calado e imóvel. Quanta saudade!

        O protocolo diplomático internacional atribui o tratamento de Sua Santidade (SS) somente ao Papa e ao Dalai Lama.

        Por falar em Dalai Lama, falamos do Tibet. E vem à mente um sentimento de inconformismos, pois mostra como esta ONU é fictícia e nada resolve. Em 1950 a ONU emitiu ordem para que a China desocupasse o Tibet imediatamente. E até hoje a ordem nunca foi cumprida. E o nosso Dalai Lama vive na India (Dharampsala) e o povo tibetano teve destruído todos os seus templos. Talvez tenha restado um ou outro.

        Também, pudera, um organismo internacional que tem um grupo seleto com poder de veto, mesmo quando o réu, o infrator, o criminoso seja ele próprio, o que vetou a punição contra si e que todos aprovaram!

        Muito agradeço os comentários. Agradeço ao nobilíssimo Christian Cardoso.

        • 1) Belo depoimento Dr. Béja, mais uma vez, merecidos parabéns !

          2) Nessa época, 1992, eu morava perto da Estrada Dom Joaquim Mamede, alto de Santa Teresa, onde fica a Casa do Cardeal, que hoje é o Centro de Estudos do Sumaré (Católico).

          3) Algumas vezes o carro oficial levando ou trazendo o Dalai Lama, com seguranças em outros carros na frente e atrás, incluindo os batedores.

          4) Eu ficava no portão, vendo-o passar e fazia a tradicional reverência. Da janela, no banco de trás do carro nossos olhares cruzavam-se.

          5) Hoje ainda moro em Santa Teresa, um pouco mais abaixo.

          6) Quanto a Dom Eugênio Salles, gostava muito dele, por motivos que já publiquei artigo na antiga TI impressa.

          7) Um amigo que foi preso político me contou que Dom Eugênio visitava os presos políticos com frequência e quando não podia enviava um assessor.

          8) Detalhe: meu amigo ateu. comunista tornou-se admirador de Dom Eugênio.

  2. Dr. Béja, mais do que o reconhecimento justo, por toda uma vida de trabalho digno, as histórias acima devem ser guardadas e repassadas.
    Profundos ensinamentos que, lamentavelmente, grande parte de nossa sociedade desconhece,
    Com a permissão sua e do amigo CN, um dia, não posso precisar quando, esta história estará publicada como “Histórias que precisam ser conhecidas!”
    Que Deus lhe proteja sempre e que haja sempre muita luz em seu caminho!
    Fraterno abraço.
    Fallavena

  3. Quarenta anos de militância no Fórum, resolvendo os casos da vida dos clientes, muitos deles eivados de tragédias e dramas complicados, formam um arcabouço de conhecimentos profundos sobre a alma humana.
    Trata-se de uma experiência transcendental. Isso tudo, exposto em Livro, com nomes das partes trocados, ajudaria os novos advogados nas suas carreiras e os leitores ficariam extasiados.
    Abraços.

    • Verdade. Verdade. Verdade, Roberto Nascimento. Não é apenas arcabouço de conhecimentos profundo sobre a alma humana e ainda experiência transcendental. Tudo isso que Roberto Nascimento retrata é pura verdade. Em contrapartida, por ter absorvido tanta choro, tanta lágrima, tanto desespero dos parentes dos vitimados e de quem fui advogado, hoje me sinto um trapo. Não tenho vergonha de dizer que choro todos os dias. E durmo à base de Frontal 2mg e Rivotril 2mg. Destes, me tornei dependente.

      Até mesmo tocar piano — que aprendi desde os 8 de idade e nunca mais parei — já não toco mais. O piano aqui de casa está fechado e calado. Uma vez ou outra toco um peça, mal executada, porque os dedos perdem a agilidade. Dia deses gravei uma Sonata e enviei para o Carlos Newton, esposa e filha.
      Obrigado, nobre Roberto Nascimento.

  4. Agora, após ler o artigo, fiquei imaginando como o oficial do cartório reagiria se lhe fosse pedido o registro de um menino com nome de Efeagacê… (C.N.)

    Boa!!!!

    eh!eh!eh

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