Folha
Certa vez, em Lisboa, um historiador brasileiro fez-me uma pergunta interessante. Se eu pudesse salvar um só livro da história do pensamento político antes de um grande desastre, qual seria? Pensei uns segundos. Depois disse, naturalmente: “O ‘Leviatã’, do Hobbes”. Ele admitiu que era uma boa escolha, embora a sua opção fosse “Democracia na América”, de Alexis de Tocqueville.
Eis a diferença entre um pessimista (eu) e um otimista moderado (ele). Mas será que Hobbes era um pessimista? Depende da perspetiva. Se ficarmos no estado da natureza, onde a vida é “solitária, pobre, sórdida, brutal e curta”, não há motivos para festejar.
LEVIATÁ HUMANO – Mas a mensagem de Hobbes contém o gérmen da ordem liberal posterior. O Leviatã existe porque os homens quiseram que ele existisse, ou seja, é uma criação humana, fruto do consentimento humano.
Além disso, o seu fim é bastante limitado: garantir a paz e a segurança, nem que para isso tenha de “prender e arrebentar”, como dizia um antigo presidente brasileiro. O seu poder (quase) ilimitado procede desse fim. Hoje, rodeado por paternalismos de Estado em quase todas as áreas da minha vida, suspiro por uma versão democrática do Leviatã original: paz e segurança. O resto é comigo.
O filósofo John Gray também suspira no seu mais recente ensaio, sintomaticamente intitulado “The New Leviathans”. Mas Gray vai mais longe e escreve, sem sombra de ironia, que as nossas democracias liberais fazem lembrar os antigos regimes totalitários do século 20. Ou, para não irmos tão longe, estamos cada vez mais indistinguíveis da Rússia ou da China de hoje. Em quê?
MODUS VIVENDI – Voltemos a Hobbes: o Leviatã original estava apenas preocupado com a manutenção de um “modus vivendi” entre os diferentes indivíduos, deixando as suas almas em paz.
Os novos Leviatãs querem ir além disso. Querem controlar o que dizemos, pensamos e vivemos. São “engenheiros de almas humanas”, para usar as palavras do camarada Stálin.
Em vez de produzirem segurança, os novos Leviatãs produzem insegurança, porque induzem nos indivíduos o medo da discórdia e da “heresia”. Para Gray, isso não é defeito do liberalismo; é o resultado da sua evolução histórica.
PRIMEIRAS VÍTIMAS – O que começou por ser um projeto de limitação do poder, para que cada um perseguisse os seus fins de vida, acabou virando um projeto de libertação racional da humanidade rumo a um único fim. O pluralismo foi a primeira vítima. A tolerância foi a segunda.
Entendo o argumento de Gray: no clima censório em que vivemos, com meio mundo tentando cancelar outro meio, espíritos mais primitivos dirão que estamos de volta às ditaduras do passado.
Mas a comparação é tão absurda que bastaria apontar o óbvio: nas ditaduras do passado, ou até do presente, John Gray não veria o seu livro publicado. O mais provável, como livre-pensador, era estar na cadeia ou na sepultura por contestar a verdade incontestável do Estado.
ÚNICA VERDADE – A observação é óbvia, exceto quando não é. Sim, sou insuspeito de simpatias pela ideologia woke, pelas “políticas de identidade” e pela cultura de cancelamento que tenta fechar o debate pela imposição de uma única verdade.
Mas, ao mesmo tempo, sou capaz de reconhecer que essas paixões funestas são a expressão mais genuína de um universo pluralista, só possível em sociedades abertas.
Sou livre de ignorar essas paixões. Sou livre de criticá-las com as minhas paixões. Sou livre de me rir dos dois lados, optando sensatamente pela sensatez. Tudo privilégios interditos a quem viveu nos regimes totalitários. Além disso, se o Estado decide optar por um dogma único, atraiçoando a neutralidade liberal, sou ainda livre de participar do jogo democrático, de votar em alternativas, de mudar.
NOVA DIREITA – No fundo, John Gray, outrora um pensador sofisticado, apenas imita os panfletos da “nova direita”, que todos os meses decretam a morte do liberalismo e das democracias em que vivemos.
A única diferença é que Gray, no seu niilismo chique, nada propõe como alternativa. A “nova direita”, pelo menos, ainda alimenta a fantasia de um retorno a um passado mitificado, moralmente coeso, sem os excessos do individualismo.
São duas formas de absurdo. E o absurdo, já avisava Thomas Hobbes, é aquele privilégio “ao qual nenhuma criatura viva está sujeita, exceto o homem. E, entre os homens, os que professam a filosofia são os mais sujeitos a ele”. É uma pena que John Gray tenha escolhido essas frases como epígrafe do novo ensaio sem perceber a ironia que elas encerram sobre o seu triste caso.
Hobbes pregava um Estado muito forte (Um leviatã)para que a convivência humana pudesse ser possível, pois cada indivíduo pode ter suas razões para ações que visem somente vantagens pessoais. Ele achava que a humanidade teria que ter freios. A liberdade excessiva leva a guerras, crimes, mortes. O homem ainda não tem os atributos para dispensar o Estado, coisa idealizada por Marx no chamado comunismo utópico.