Vida contemplativa tornou-se um sonho que somente religiosos e ricos podem concretizar

Relógio D'Água Editores: Sobre Vita Contemplativa, de Byung-Chul Han

Vida contemplativa, um forma de se comunicar com Deus

Luiz Felipe Pondé
Folha

A vida contemplativa é um clássico da literatura espiritual. Vista como um modo sublime de estar com Deus, de ascese mística, ou, simplesmente, de se proteger da invasão da vida pelo mundo e seu “páthos da ação” — obsessão apaixonada pela ação, ela é um tema essencial entre cansados como nós.

“Páthos da ação” é um conceito que o crítico cultural sul-coreano, radicado em Berlim, Byung-Chul Han trabalha no seu livro recém-publicado no Brasil “Vita Contemplativa ou Sobre a Inatividade”, da editora Vozes.

CRÍTICA CULTURAL – Antes de tudo, vale lembrar que a crítica cultural é muito rara no Brasil. Aqui se prefere a crítica ideológica ou simplesmente político-partidária, mais pobre de espírito e militante.

A crítica cultural vai mais fundo e trata de todo e qualquer produto objetivo da consciência e da sociedade como objeto, sem preferência ideológica ou agenda escondida político-partidária. A crítica cultural não perdoa ninguém, por isso pode ser objeto de ódio por todos os lados do espectro político.

Byung Chul-Han emplacou um golaço em 2010 com o seu “Sociedade do Cansaço”, também da editora Vozes, muito antes do burnout virar produto da cultura de consumo e das modas de comportamento e de riquinhos com mal-estar com suas vidas entediadas pelo excesso de trabalho.

POSITIVIDADE – Assim como o próprio “Mal-estar na Cultura” de Freud —”Mal-estar na Civilização”, no Brasil—, o conceito de sociedade do cansaço se constitui numa rica hermenêutica de análise dos excessos de positividade da sociedade contemporânea —a psicologia positiva está aí para reforçar a hipótese diagnostica do crítico, apontando para um “páthos da positividade” em nossos tempos.

No último livro ele avança para fazer um elogio claro e filosoficamente sustentado da recusa da positividade contemporânea como modo de estar no mundo, agora identificada com a obsessão pela vida ativa —o tal “páthos da ação” referido acima.

Apesar de ter 174 páginas num formato pequeno, o livro é uma obra de fôlego, e, suspeito que algum fã desavisado do autor, sem um sólido repertório filosófico, ficará a ver navios, enquanto se afoga em meio a complexa teia de conceitos que ele vai montando de modo cuidadoso.

ÁGUA NO VINHO – Caso ele fosse aluno do meu querido e saudoso professor Rui Fausto — de quem tive a sorte de ser aluno na USP e em Paris 8 —, escutaria do mestre sua famosa frase sobre textos excessivamente densos: “Ponha mais água nesse vinho”.

Umas páginas a mais dariaM mais fôlego para o leitor amador —e, vale dizer, o tema acomete todo tipo de gente — perceber que ele está falando do seu dia a dia. De Deleuze a Benjamin, de Adorno a Nietzsche, de Blanhot a Novalis, de Höderlin a Heidegger, de Flusser a Heschel, de Marx a Musil, entre outros, enfim, a sequência de referências de autores de primeiro time avança de modo impiedoso.

Há, especificamente, uma preocupação muito claramente típica dos europeus ocidentais — diria, dos ricos em geral — com os excessos da ação humana focada na produção e seus efeitos na natureza em geral.

COISA DE RICO – O percurso que faz Byung Chul-Han nesse assunto é muito próximo do que Pierre Hadot (1922-2010) chamava de oposição entre uma concepção de natureza prometeica —intervencionista — e uma órfica — contemplativa —, que, segundo Hadot, vem desde a Grécia antiga, daí os títulos dados as duas concepções opostas.

Para além do fato de que o diagnóstico do crítico está corretíssimo, e de que o capitalismo — mas também o finado comunismo soviético — respira esse “páthos da ação”, há um resíduo social, político e econômico, que coloca uma questão para qualquer defesa da vida contemplativa hoje em larga escala — para além de pessoas de vida religiosa contemplativa “profissional”.

Essa discussão está bem ambientada num país rico e organizado como a Alemanha e similares. Em se tratando do Brasil e similares, essa discussão é chique como uma bolsa Prada. Quem pode conceber uma vida real cotidiana em que a inatividade seja uma escolha possível? Afora jovens das classes altas, quem mais pode sonhar com uma vida que não seja escrava do “páthos da ação”? Ninguém.

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