Jamil Chade
do UOL
Entre as bandeiras do corredor da ONU, João Cândido Portinari cantarolava o que era o sentimento que tomava conta daquele homem com intensos olhos azuis: “prepare o seu coração”, numa referência à canção de Geraldo Vandré. Com 86 anos, o filho de um dos maiores artistas brasileiros parecia saber de cor o caminho que levava até as obras de seu pai, Cândido Portinari.
Num dos saguões da ONU, em Nova York, estão duas das principais obras do pintor — “Guerra e Paz”, telas doadas pelo Brasil para a instituição que representava o sonho de uma utopia. Os raios de sol que entravam pelas janelas naquele dia de visita tornavam o momento do reencontro entre João e as telas ainda mais mágico.
CORAÇÃO APERTADO – Questionado pelo UOL, que acompanhava a visita, sobre o que sentia quando via as obras, João não hesitou: “um coração apertado”.
O motivo de seu comentário é a decisão da ONU de impedir que as telas sejam visitadas nos tours organizados aos turistas de todo o mundo ao prédio.
Tampouco os jornalistas que cobrem diariamente as reuniões da ONU podem ter acesso. Os quadros ficam em uma área reservada, por onde apenas diplomatas passam.
SEM UNIDADE – E, mesmo assim, o espaço passou a ser local de exposições de outras iniciativas, rompendo a unidade entre as duas telas gigantes —”Guerra” e “Paz”— que se contrapõem. Enquanto o filho de Portinari examinava a obra do pai, negociadores e embaixadores percorriam o local, ignorando as telas ou já acostumados com elas.
João contou que essa não é a primeira vez que as telas desaparecem do público. No início da década de 50, o então secretário-geral da recém-criada ONU, Trygve Lie, pediu que governos de todo o mundo presenteassem a instituição com obras de arte que representassem as respectivas culturas.
O governo brasileiro encomendou a Portinari uma peça que tratasse de guerra e de paz.
NA ENTRADA – Os murais foram colocados na entrada na Assembleia Geral, numa disposição pela qual os negociadores encarariam a guerra, em sua entrada. E, ao sair, a paz. Uma espécie de visualização de seu trabalho de negociadores em um mundo sem conflitos armados.
Os painéis chegaram à ONU em 1956. Mas permaneceram durante um ano inteiro em caixotes. “Meu pai ficou preocupadíssimo [com a possibilidade de] que eles pudessem estragar”, contou o filho.
“Houve até um movimento de artistas e intelectuais que sugeriram que o Brasil pedisse as obras de volta”, disse.
OBRA DE PICASSO – Enquanto os painéis ficavam fechados, diplomatas discutiam se elas deveriam ser colocadas em outro local do prédio. “Havia um debate se aquele saguão deveria ser usado para uma obra de Pablo Picasso”, relatou João.
Mas, por uma operação exitosa do Itamaraty nos bastidores, Portinari manteve seu espaço e, finalmente, as obras foram instaladas em 1957.
Na inauguração, porém, quem desapareceu foi o próprio pintor. Ao solicitar o visto americano para viajar para Nova York, Portinari recebeu um alerta: teria de declarar que não era comunista. “Ele se recusou”, contou João.
VISTO NEGADO – O visto jamais lhe foi concedido. “Isso mostra o homem que ele era. Aquela era a maior oportunidade de passar uma mensagem de paz”, afirmou o filho, responsável por manter e democratizar o acervo do pai.
Não foi a única ocasião de um veto ao pintor. Em 1949, Portinari também foi impedido de viajar aos EUA para uma conferência mundial da paz.
Ainda assim, na inauguração dos painéis na ONU, em setembro de 1957, o prêmio Nobel Dag Hammarskjöld, então secretário-geral da entidade, declarou que aquelas eram as obras de arte mais importantes doadas às Nações Unidas.
SEM PORTINARI – O chefe da Missão do Brasil junto à ONU, embaixador Cyro de Freitas Valle, lamentou que Portinari não estivesse presente.
“Com pesar, não o vejo entre nós”, disse “Desejo salientar um ponto: o Brasil acredita estar oferecendo hoje à ONU o que tem de melhor para dar”, completou.
Foram necessários mais de 50 anos para que a ONU fizesse um reconhecimento público da dimensão da doação brasileira. Depois de as telas terem sido restauradas no Brasil e devolvidas para a ONU, o então secretário-geral da entidade, Ban Ki-moon, qualificou “Guerra e Paz” como “mais do que magníficas obras de arte”. “Elas são o chamado de Portinari para a ação. Graças a ele, todos os líderes que entram nas Nações Unidas veem o terrível preço da guerra e o sonho universal pela paz”, disse.
DEU A VIDA -Ban Ki-mooncontou como “o próprio Portinari foi advertido por seus médicos a parar de trabalhar nos murais porque estava ficando doente por causa da tinta de chumbo. Mas ele se recusou. Ele literalmente deu sua vida para terminar essas obras-primas. Ele nunca viveu para vê-las instaladas”, lamentou.
Mas nem sempre as telas foram marcadas por invisibilidade. Antes de deixar o Brasil, em 1956, as obras foram expostas no palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. João, na época com 17 anos, se lembra de tudo. Inclusive do impacto de uma crônica de Carlos Drummond de Andrade sobre o que havia visto.
“Se tais pinturas não se gravarem por toda a vida na tela interior, é que não mereceríamos tê-las visto. Usando a linguagem da obra de arte, que é uma alegria perfeita mesmo quando nos expõe o pranto e a solidão mortuária, Portinari nos diz : Olha, vê bem, penetra o fundo destas imagens, e escolhe”, escreveu.
VOLTA AO MUNDO – O pintor escolheu a paz e, agora, seu filho quer levar as telas para percorrer o mundo, com paradas na Itália e na COP30, em Belém, em 2025. O trecho final envolveria uma exposição no Museu Nacional de Pequim, em 2026. Mas nada está garantido ainda, diante dos elevados custos, exigência de um planejamento cuidadoso e do fato de envolver peças que foram doadas para a ONU.
Portinari, o filho, já demonstrou que não lhe falta planejamento nem experiência. Há dez anos, o Projeto Portinari obteve a guarda das telas por seis anos, o que permitiu que elas fossem restauradas e expostas no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Belo Horizonte e em Paris.
A esperança de João Cândido é que a obra-prima de seu pai possa, agora, dar a volta ao mundo numa missão de paz.