Eliane Cantanhêde
Estadão
Depois de longa e cuidadosa negociação, o Planalto e as Forças Armadas, com mediação da Defesa, chegaram a um acordo que pode não ser o melhor, mas é conveniente para o momento: reabertura da Comissão de Mortos e Desaparecidos e não se fala mais em mudar a previdência dos militares – pelo menos, por ora.
Remexer o passado, com os implicados em torturas já mortos ou na reserva, é uma coisa; mexer no presente, com todos os interessados vivos, é muito mais complicado.
COMISSÃO DE FHC – O parecer da Defesa, favorável à retomada da comissão, é de março de 2023, mas o comandante do Exército, general Tomás Paiva, disse à coluna, antes de embarcar para a China, na sexta-feira, que é preciso distinguir a Comissão de Mortos e Desaparecidos, criada no primeiro ano de governo de Fernando Henrique, da Comissão da Verdade, que vigorou nos anos de Dilma Rousseff. A que está de volta é a de FHC, com atualizações.
A diferença é que a Comissão da Verdade “deixou muito ressentimento nas Forças Armadas, que a consideraram parcial, revisionismo, revanche, só investigando e pronta para punir um lado”, disse o general.
Já a que está de volta tem um “foco até humanitário”, que é buscar os restos mortais dos 144 ainda hoje desaparecidos e, onde é cabível, ressarcir as famílias. “Pais, mães, filhos, filhas, irmãos têm o direito de saber o que de fato ocorreu com seus entes queridos e onde estão seus restos mortais”, acrescentou, lembrando que o Exército já colaborou com buscas, inclusive no Araguaia, mas temendo frustração: “Passou muito tempo, é muito difícil achar”.
COMISSÃO DA VERDADE – Ele não disse, mas parece claro que a negociação se arrastou quase um ano e meio porque setores do governo, liderados pelo chefe da Casa Civil, Rui Costa, e o ministro dos Direitos Humanos, Sílvio Almeida, queriam a Comissão da Verdade, e as Forças Armadas, à frente o ministro da Defesa, José Múcio, a dos Mortos e Desaparecidos. Convencido de que “é preciso cuidar bem dos amigos, de quem está ajudando depois de tantos problemas”, o presidente Lula desempatou pró FA.
E a previdência dos militares, alvo da primeira lista de cinco itens que circulou na área econômica para o corte de gastos? Múcio é curto e direto: “Isto está fora da pauta”.
Ele e os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica souberam da ideia pela imprensa – e não gostaram. Múcio pegou o carro oficial, percorreu os três minutos entre o ministério e o Planalto e fez uma longa argumentação para Lula, que, depois, disse publicamente que não iria tocar essa história adiante.
DIZ O COMANDANTE – Segundo o general Tomás, “o que as Forças Armadas têm não é previdência, é sistema de proteção social” e o “patrão”, que é o governo, banca duas partes da contribuição dos civis, mas nenhuma dos militares.
Refletindo a resistência da caserna a mudanças, disse que “o sistema (dos militares) é justo e mexer nele pode inviabilizar a carreira militar”, porque, no início da carreira, os soldos são muito baixos, há muitas mudanças de estado, casa, escola e é difícil fazer poupança e, no fim, só 4% dos oficiais chegam a general, todo o resto vai para reserva, no máximo, como coronel.
Se o argumento é válido ou não, é uma questão para a área técnica discutir e a área política decidir. O fato é que o torniquete da Polícia Federal e da Justiça está se fechando em torno do ex-presidente Jair Bolsonaro, generais, almirantes e coronéis, enquanto a extrema direita cresce no mundo e o ambiente econômico é instável. Logo, não é hora de abrir mais frentes de atrito. Além, claro, de uma comparação ardida: o Congresso abocanha bilhões de reais em emendas, o Judiciário esbanja em super salários e viagens extravagantes e o corte vai ser na previdência dos militares? Até que poderia, ou deveria, mas não parece prudente.