Thomas Traumann
Veja
O presidente Lula da Silva governa com um pé em cada canoa. A canoa oficial é a da reconciliação de um país mergulhado numa disputa fraticida. É a canoa do slogan oficial “União e Reconstrução” e da bela campanha da Secretaria de Comunicação Social da Presidência sobre tolerância no Natal. A segunda canoa é de quando fala para os seus eleitores mais fiéis e ressalta seu desprezo por Jair Bolsonaro e pelos bolsonaristas. Essas duas canoas navegam por correntes opostas.
Lula tem o diagnóstico correto da necessidade de falar para públicos diferentes e muitas vezes divergentes, mas o seu discurso de quinta-feira, dia 14, mostra a distância entre intenção e prática.
PROVOCAÇÃO -Falando na abertura da 4ª Conferência Nacional da Juventude do Partido dos Trabalhadores, em Brasília, Lula começou com uma provocação.
“Vocês não sabem como eu estou feliz hoje. Pela primeira vez na história deste País, conseguimos colocar na Suprema Corte um ministro comunista, um companheiro da qualidade do Flávio Dino”, afirmou, se referindo ao ex-filiado do PCdoB que na noite anterior havia sido aprovado pelo Senado para ser o novo ministro do STF.
Os jovens petistas gritaram o nome de Dino e trataram a nomeação como um compromisso do presidente com a esquerda, o grupamento que mais cobra gestos do governo. O gracejo deu força para o bolsonarismo nas redes sociais.
BUSCAS NO GOOGLE – A pesquisa sobre comunismo foi a quarta principal tendência de busca do Google na sexta-feira, mostrou o jornal digital Poder360. Mais de 20 mil pesquisas foram feitas sobre o assunto, num crescimento de mais de 3.400% em 24 horas. Depois da fala de Lula, “comunismo” foi o principal assunto buscado em política, atrás só de procuras sobre futebol.
Na plataforma X (ex-twitter), foram 55 mil posts a respeito, a imensa maioria negativos ao presidente e ao novo ministro do STF.
A declaração de Lula é comparável em termos de polarização com a forma com que Jair Bolsonaro em 2021 indicou o advogado André Mendonça ao STF por ser “terrivelmente evangélico”.
VIÉS ESQUERDISTA – Derrotado no Senado ao tentar impedir a indicação de Dino, o bolsonarismo transformou a frase de Lula na confirmação de tudo o que havia previsto um terceiro mandato de Lula dominado pelo viés esquerdista.
“A gente vê agora a alegria dele, diz que está feliz que colocou um comunista. Me lembro dos discursos do Fidel Castro. Os caras sempre lutam pelo poder. Roubar a liberdade é a mais importante cartada deste povo”, reagiu Bolsonaro, na solenidade em que recebeu o título de cidadão honorário do Paraná, em Curitiba.
Os bolsonaristas distribuíram a fala de Lula para milhões de eleitores, gerando o pior momento do governo Lula nas redes sociais em meses. Assessores de Lula tentaram minimizar a fala como um “gracejo”, reforçando a dificuldade do entorno do presidente em reconhecer os erros do chefe.
IMPOPULARIDADE – Duas pesquisas divulgadas na semana passada mostraram a impopularidade da indicação de Dino ao STF. No Real Time Big Data, 55% dos entrevistados se disseram contrários à indicação. No IPF, do site Jota, 52%. Para 64%, a origem comunista do mais novo ministro é o principal motivo para a rejeição.
O contraditório é que no restante do discurso aos jovens petistas, Lula apontou justamente para a canoa da conciliação. “Nós temos que conversar com pessoas que vocês não gostam, com pessoas que vocês ficam até com ojeriza quando veem o Lula na TV conversando com essas pessoas”, pediu aos jovens. Ficou mais difícil.
Na véspera de Natal, o presidente falou à nação para incentivar a campanha do governo federal de incentivo à reconciliação de relações rompidas pela política.
UM SÓ POVO – A trilha musical entoa mensagens como “um Brasil e um só povo” e “somos filhos de uma mãe gentil, de um Brasil que luta e não se curva”, com variações musicais que incluem o gospel, a música identificada com os evangélicos.
Vários dos diálogos incluem expressões como “graças a Deus” e “consagrado” em cenas criadas em torno de políticas públicas, como o PAC e o Minha Casa Minha Vida. Há um tom natalino nos roteiros que valorizam família e sentimentos de solidariedade.
A campanha surge em um clima hostil. Pesquisa Genial/Quaest de outubro mostrou que 54% dos eleitores conheciam pessoas que romperam relações por divergência políticas.
TIPOS DE ELEITORES – Num dos capítulos do livro “Biografia do Abismo”, o cientista político Felipe Nunes e eu classificamos oito tipos de eleitores de Lula e Bolsonaro, a partir de uma série de pesquisas com grupos focais. Três deles, os petistas, progressistas e eleitores das classes D e E, estão com Lula. Os fascistas, o agro e os conservadores cristãos estão com Bolsonaro.
Sobram dois quinhoes em disputa, que chamamos de “empreendedores” e os “liberais sociais”. Os primeiros são pequenos empresários, a maioria do Sul e Sudeste, que tem como maior bandeira a redução de impostos e que se tornaram visceralmente antipetistas a partir da recessão no segundo governo Dilma e o escândalo da Lava Jato. O segundo é a parcela da sociedade rica e cosmopolita, que sonhou com uma terceira via, e que tem na democracia um valor inegociável.
Juntos, esses dois fragmentos somam apenas 6% do eleitorado. Num país de paixões calcificadas, eles decidem quem vence.