Charge do Kacio (Metrópoles)
Gabriel de Arruda Castro
Gazeta do Povo
A história do futuro está sendo escrita agora nos bancos universitários. Mestres e doutores produzem as obras fundamentais que servem como base para livros didáticos. Também é nas universidades que saem muitas das ideias que hoje tomam conta do debate em Brasília.
Por isso, é provável que, num futuro próximo, os jovens brasileiros acreditem, como um fato da realidade, que o impeachment de Dilma Rousseff foi um golpe e que a população negra sofre um genocídio no Brasil.
BANCO DE TESES – A conclusão emerge de uma análise feita pela Gazeta do Povo sobre 7 mil dissertações de mestrado e teses de doutorado publicadas no Banco de Teses da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Destas, 5 mil foram apresentadas em 2023 e 2.000 no ano anterior.
É uma amostra representativa porque os trabalhos foram selecionados de forma aleatória, incluindo 93 instituições de ensino e mais de 240 áreas do conhecimento diferentes. Ou seja: o levantamento não se restringe às Ciências Humanas e Sociais.
Boa parte das menções ao impeachment que derrubou Dilma Rousseff trata o episódio como um golpe que abriu a porteira para o que existe de pior na política.
UM BOM EXEMPLO – “Desde o Golpe 2016, muitas medidas antidemocráticas, fascistas e neoliberais se espraiaram, atacando o Sistema de Proteção Social brasileiro”, escreve Cristinno Farias Rodrigues, em sua tese de doutorado em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão.
O “golpe”, aliás, é um tema centrado da tese, que recebeu o título de “Reconfigurações na implementação da política de assistência social no Maranhão: avaliação dos serviços da proteção social básica a partir do golpe 2016″.
Rodrigues não explica porque o impeachment de Dilma Rousseff foi golpe. Simplesmente parte do pressuposto de que foi. E ele não é o único.
OUTRAS SANDICES – Em uma tese de doutorado em Saúde Pública na Fundação Oswaldo Cruz, Hugo Braz Marques diz que “Mediante a ascensão antidemocrática de Michel Temer, suas contrarreformas aprofundaram a demolição de direitos e políticas sociais, a criminalização dos movimentos campesinos e as desonerações tributárias aos grandes latifundiários”.
Na Universidade Federal do Espírito Santo, a dissertação de mestrado em Educação de Verônica Santana Epifânia Bernardino afirma que “em 31 de agosto de 2018, após o golpe contra a presidente Dilma Roussef, Michel Temer (período do mandato) assumiu o poder.” Neste caso, até a data está errada: Temer tomou posse em 2016.
O fato de Jair Bolsonaro aparecer em primeiro lugar na lista das figuras públicas mais citadas não significa, necessariamente, que essas menções são negativas. Mas, na prática, é difícil encontrar alguma referência favorável ao ex-presidente.
FASE PÓS-GOLPE – Para muitos dos novos mestres e doutores brasileiros, o “golpe” de 2016 deu início a uma sequência de acontecimentos cujo pior dos males foi a ascensão de Bolsonaro.
É como se a remoção de Dilma Rousseff tivesse aberto uma espécie de Caixa de Pandora — termo que, aliás, aparece com todas as letras.
“Infelizmente, esses aspectos misógino e heteronormativo, assim como outros demônios que saíram da caixa de Pandora do golpe, conseguem representar a maioria da população brasileira, levando o candidato de extrema direita (…) Jair Bolsonaro, à presidência”, raciocina Francisco Djefrey Simplício Pereira, em uma dissertação de mestrado em Linguística na Universidade Federal do Ceará.
ÓDIO ÀS MULHERES – Barbara Alves Matias, que concluiu um mestrado em Literatura na Universidade Federal do Rio de Janeiro, também reservou espaço em sua tese para tratar do governo Bolsonaro:
“A pesquisa foi pensada e desenvolvida durante o governo de Jair Bolsonaro, que institucionalizou e transformou em aparelho do Estado os discursos de ódio contra mulheres, dissidentes de gênero e outros grupos subalternizados, alicerçando uma espécie de nova inquisição entre aqueles que se propusessem a difundir discussões sobre corpo para além de uma perspectiva estritamente biológica e reprodutiva.”
Já o termo “saúde reprodutiva” costuma ser usado pelos defensores da legalização do aborto.
Em uma tese de mestrado em Geografia pela Universidade Federal de Uberlândia, Ludmila Pereira Alves fez uma associação entre Adolf Hitler, o fascismo, o agronegócio brasileiro e Jair Bolsonaro. Ao analisar o filme “Triunfo da vontade”, uma peça de propaganda nazista, ela estabeleceu um paralelo do líder alemão com os grandes produtores rurais brasileiros.
HITLER E MARIELLE– “Muito mais do que a idolatria ao próprio Hitler, o filme consegue projetar uma ideia que é também um espetáculo, tornando uma mentira algo absolutamente real para seus seguidores. Tão real que atravessou décadas e milênio e o feito hipnótico do Triunfo da vontade permanece vivo e atual nas propagandas que vinculam espaço e poder, como o próprio agronegócio no Brasil”, Ludmila argumentou. “Hoje, no Brasil vivenciamos traços claros de um modo de ser fascista vinculado à personalidade do atual presidente da república: agressivo, autoritário, cínico, adepto de slogans rasos, porém letais”, acrescentou, em referência a Bolsonaro.
Dentre as 30 figuras públicas mais citadas nas 7.000 teses, está Marielle Franco. A vereadora carioca assassinada em 2018 aparece em 79 teses e dissertações, à frente do ex-presidente João Batista Figueiredo e de Napoleão Bonaparte.
Algumas delas insinuam uma ligação da família Bolsonaro com o caso.
MILÍCIA E BOLSONARO – “Embora o assassinato de Marielle tenha ocorrido durante o governo golpista de Michel Temer, o meio militar já sabia das relações que a milícia ligada a família Bolsonaro tinha em relação ao caso do assassinato, mas mesmo assim não se importou em compor um governo cujas relações com organizações milicianas se expunham para qualquer um que quisesse”, escreve André Elias Barreto da Silva, em sua dissertação de mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense.
Os novos mestres e doutores brasileiros têm predileção por certos temas. Um deles é o chamado “racismo estrutural”. Das 7 mil teses, 359 mencionam a expressão. Para fins de comparação, “Descobrimento do Brasil” é citado apenas 49 vezes nos 7 mil trabalhos. “Proclamação da República” tem 314 citações.
GENOCÍDIO NEGRO – O doutorando Alexis Magnum Azevedo de Jesus, por exemplo, construiu sua tese em Educação pela Universidade Federal de Sergipe sobre a crença de que a população negra é vítima de um genocídio no Brasil.
“O funcionamento da máquina jurídico-estatal, sobretudo o sistema penal, está organizado para o aprofundamento do genocídio da população negra”, ele diz. A palavra “genocídio” aparece 317 vezes no trabalho.
Nas teses compiladas pela Gazeta do Povo, outros tipos de radicalismo aparecem com frequência. “Racismo religioso” tem 61 menções; “racismo ambiental” tem 58; “racismo cultural”, 14.
BLOQUEIO A CUBA – A Revolução Cubana, por exemplo, continua a fascinar mestrandos e doutorandos Brasil afora. Adriana Kerchner da Silva achou espaço para atacar o imperialismo americano em sua dissertação de mestrado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O trabalho tem como base a obra dos escritores cubanos Juan Francisco Manzano e Esteban Montejo.
“Imperialismo americano” e suas variações, aliás, aparecem em 80 trabalhos acadêmicos catalogados pela Gazeta do Povo. Um deles é o de Douglas da Silva Araújo, que juntou o tal imperialismo com o “golpe” contra Dilma Rousseff e o neoliberalismo.
E assim vão sendo formados novos mestres e doutores acadêmicos no Brasil, dispostos a reescrevera História Contemporânea.
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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – Assustadora matéria, enviada por Mário Assis Causanilhas. Mostra que o deputado Francelino Pereira tinha toda razão quando perguntou, durante o regime militar: “Que país é esse?”. Se depender dos novos trabalhos acadêmicos, realmente ninguém vai saber responder. (C.N.)