Carlos Alberto Sardenberg
O Globo
E depois o ministro Haddad reclama quando o pessoal desconfia do cumprimento das metas do arcabouço fiscal. Reparem: o governo entrou janeiro prevendo superávit para as contas deste ano; seis meses depois, a projeção já tinha virado um baita déficit. E isso mesmo com o ministro cumprindo a tarefa de turbinar as receitas.
Nos meios econômicos, o pessoal acredita em contas. Com os números agora conhecidos, a desconfiança torna-se dominante. No Orçamento para este ano, aprovado no Congresso, previa-se superávit de R$ 9 bilhões para o governo federal, boa folga diante do déficit zero estabelecido no arcabouço.
TONS DE VERMELHO – No passar dos meses, os números ganharam tons de vermelho toda vez que se refazia a conta. Concluído o primeiro semestre, a projeção já era de um déficit de R$ 44 bilhões, arredondando.
Vai daí, depois de muita conversa de persuasão com o presidente Lula, o ministro Haddad anunciou um corte de R$ 15 bilhões na execução orçamentária. Isso para deixar a projeção de déficit para este ano em R$ 29 bilhões, declarando cumprir a meta do arcabouço.
Mas a meta não era zero? — pergunta o brasileiro comum, que não é obrigado a conhecer as matemáticas oficiais. Ocorre que a meta tem uma margem de tolerância de R$ 29 bilhões (equivalente a 0,25% do PIB) para mais ou para menos. Logo, se a previsão de déficit saltou para aqueles R$ 29 bilhões, tudo bem, está dentro da meta, certo? Ou mais ou menos?
APENAS ACOMODAÇÃO – Margem de tolerância é um esquema de acomodação. Sabe como é, pode acontecer algum imprevisto, uma receita a menos, uma despesa a mais, que se acomoda na margem. Não é o que fez o governo. Se o buraco previsto na última contagem bateu nos R$ 44 bilhões, o corte no Orçamento deveria ser desses mesmos 44 bilhões para restabelecer a meta de déficit zero. Como temos um governo que quer gastar, e não equilibrar, resolveram congelar apenas R$ 15 bilhões.
O que isso significa? Simples: mudaram a meta de zero para um déficit de R$ 29 bilhões, no limite máximo da margem de tolerância. Alargaram o alvo. Daí a desconfiança. Se, em seis meses, o governo já jogou a toalha, num ambiente em que a dinâmica de gastos permanece a mesma, qual a tendência mais provável?
Ora, que a meta seja alterada de novo, com péssimas repercussões políticas e econômicas. E no dólar mais alto, pressionando a inflação e, pois, os juros.
DEPENDIA DA RECEITA – Desde o lançamento do arcabouço, sabia-se que o êxito dependeria de forte ganho de arrecadação. O ministro Haddad foi à luta e conseguiu. No primeiro semestre deste ano, as receitas do governo federal cresceram nada menos que 9%, descontada a inflação, em comparação com o mesmo período de 2023.
Sim, o ministro tomou dinheiro dos ricos, taxando os fundos exclusivos, mas também tomou das classes médias com o PIS/Cofins sobre os combustíveis. E tomará mais um tanto com os 20% de imposto de importação sobre as “blusinhas”, que entra em vigor em 1º de agosto.
Em resumo, a arrecadação bate recorde todos os meses. Significa que, a cada mês, o governo toma uma parte maior da economia. Só que as despesas crescem ainda mais depressa: alta de 10,5% no primeiro semestre, já descontada a inflação. Não fecha.
DECISÃO DE LULA – O governo, por determinação de Lula, não atacará nas principais fontes de despesas crescentes, os gastos previdenciários e do Benefício de Prestação Continuada (BPC). Pensões e BPC, pela regra, têm ganho real, acima da inflação.
Pode-se defender a prática: o governo promove o bem-estar social, distribuindo renda para os mais pobres. OK, mas aí seria preciso reduzir o gasto em outros setores, incluindo funcionalismo, educação e PAC, para ficar em poucos exemplos. Lula não topa, claro.
E tem mais: o déficit verificado no primeiro semestre é só de R$ 44 bilhões porque não se contam os gastos com o Rio Grande do Sul e outros, como pagamentos de precatórios. Está na lei. Esses gastos não contam para fins de arcabouço fiscal. Mas estão lá. Contando esses, o déficit real vai a R$ 66 bilhões. Não entra na matemática oficial, mas entra na dívida pública — e, pois, nos juros, no dólar, na inflação.