De onde poderia vir esse choro espalhado pelo mundo, eterno e contínuo?

Israel submete população de Gaza 'à fome forçada', diz alto funcionário da  ONU à BBC - BBC News Brasil

Crianças palestinas disputando arroz na Faixa de Gazaq

Luiz Felipe Pondé
Folha

Em algum dia de 2022, entrei num templo yazidi na Armênia, um belíssimo templo cor âmbar, com seu grande pavão ao centro do altar. Radicalmente vazio, suportando uma imensa luz, como que cantando o canto do pavão, representante da sua divindade monstruosa, conhecida como o anjo mau. Vendo vítimas em Israel, Gaza, Ucrânia, Irã e África, é impossível as almas mais atentas não buscarem rastros do anjo mau yazidi.

O Estado Islâmico, grupo assassino islamita, matou yazidis aos montes, escravizou suas mulheres como prostitutas não pagas, aos olhos de um mundo indiferente ao massacre yazidi. A “justificativa” do “califado” era que os yazidis são adoradores do Satanás.

SANTA HERESIA – A cosmologia yazidi é parente próxima de heresias cristãs desde a Antiguidade, como gnosticismo, maniqueísmo, e, já adentro da Idade Média europeia, os bogomilos e cátaros. Os yazidis também são considerados uma heresia dentro do islamismo.

Todas essas formas de espiritualidades sombrias carregam consigo a hipótese, para alguns, herdeira do zoroastrismo persa antigo, segundo a qual há uma força, ou divindade, que age sobre o mundo fazendo dele um local de sofrimento, agonia e desespero.

Quando vemos a agonia dos seres humanos, dos cachorrinhos e seres vivos como um todo diante do envelhecimento e da morte, é impossível as almas mais desesperadas não sentirem o halo do anjo mau yazidi sobre o horizonte.

VÍTIMAS DA GUERRA – Quando vemos as vítimas massacradas em Israel, Gaza, Ucrânia, Irã e na sempre esquecida África, é impossível as almas mais atentas não buscarem os rastros do anjo mau yazidi.

De onde poderia vir esse choro espalhado pelo mundo, eterno, contínuo, ensurdecedor, senão dos olhos cheios de sangue desse anjo mau?

Qual a resposta possível, razoável, à hipótese yazidi? O filósofo alemão Leibniz (1646-1712) perdia o sono buscando uma resposta racional à hipótese gnóstica e seu demiurgo cruel criador do mundo —parente próximo do anjo mau yazidi, representado pela figura do pavão majestoso em seus templos.

SURGE A TEODIREITA – Se essas cosmologias negativas tiverem razão, o que fazer? Leibniz acabou por cunhar o importante conceito de teodiceia para responder aos gnósticos. Há que responder a este desafio de forma racional, ou seja, encontrar um caminho que justifique o mundo tal como ele é, sem apelo à revelação sagrada. Daí a sua hipótese do “melhor mundo possível”.

Nosso mundo é o melhor mundo possível. Uma vez que só Deus é perfeito, nada pode sê-lo sem ser essa coisa mesma Deus. Deus entrega esse mundo a nós, e cabe a nós fazer o melhor que os imperfeitos podem fazer numa matéria sem si imperfeita.

São inúmeras as controvérsias acerca dessa hipótese. Voltaire (1694-1778) mesmo escreveu seu “Cândido” para criticar Leibniz e tirar sarro da sua proposta ingênua diante de um mundo de trevas dominado por superstições, ignorância e religiões idiotas — para Voltaire, uma redundância.

SOMOS CÂNDIDOS – Para Cândido, o protagonista, a única solução ao final seria “cuidar do nosso jardim”, ou seja, o mundo lá fora está além das nossas possibilidades de redenção. O nome em francês, “Candide”, carrega a mesma ambiguidade do termo em português, nome próprio e adjetivo similar a ingênuo ou dócil.

Para o “mainstream” teológico das três religiões monoteístas abraâmicas —judaísmo, cristianismo e islamismo—, a hipótese negativa dos yazidis e seus próximos no cristianismo é absurda. O criador é bom e justo, e sua criação, portanto, é bela e boa —parece Platão.

Somos chamados à ação sobre o mundo e no mundo. Somos chamados a cuidar da criação, uma vez que, como diz Deus a Adão, somos os guardiões da criação divina.

AO ANJO CRUEL – Apesar do caráter sedutor e elegante da hipótese negativa acerca da criação —para a razão, parece mais razoável, dado o estado do mundo, que ele tenha sido criado, ou seja administrado, por um princípio mau—, se fosse dado a mim escolher entre a hipótese negativa dessas heresias e a hipótese “otimista” da teologia “mainstream”, escolheria esta. Teologicamente e existencialmente, parece-me terrível a possibilidade de Deus ser mau ou ter entregado sua criação ao cruel anjo mau.

UMA GRANDE VIAGEM – Por exemplo, parece-me também muito elegante a hipótese da filósofa portuguesa Cristina Sá Carvalho, professora da Universidade Católica Portuguesa em Lisboa, inspirada nas ideias do papa Francisco, morto recentemente, de que devamos fazer uma “viagem até a misericórdia” a fim de cuidar do mundo e das coisas.

Seu livro “A Misericórdia como Categoria Política”, da UCP Editora, é um belo trabalho de argumentação a favor da ideia de que, sem a misericórdia, não há como sustentar o mundo e as coisas dentro dele. Entretanto, a misericórdia, como tudo mais que importa, está sempre nos detalhes.

1 thoughts on “De onde poderia vir esse choro espalhado pelo mundo, eterno e contínuo?

  1. O massacre está bem aqui.

    O terrorismo é praticado a tiros certeiros contra trabalhadores que atravessam a Avenida Brasil.

    A ditadura é imposta por togados, dotados de imensa esperteza, habilidades sobre humanas da alta malandragem além desta vida, por gerações, sem altos e baixos, sempre poderosos e no ápice das rodas da fortuna.

    Para os homens maus, inteligentes e sempre poderosos, a conta jamais chega.

    E quanto mal causam aos inocentes que não foram privilegiados com as mesmas capacidades?

    Se há fome e miséria e crimes e enriquecimento ilícito e corrupção, há sócios.

    E os sócios sempre abusam da toga.

    Do poder ilícito e arbitrário que usurparam, sem nenhum voto, do povo.

    O promotor que se omite, o juiz que solta bandidos e usa o Estado para perseguir, extorquir, caluniar, torturar e roubar inocentes.

    O que urge fazer: enforcar o último bandido de toga com as tripas do último promotor sócio do crime.

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