“Polícia e ladrão” é brincadeira de adultos e se chama polarização

Nani Humor: POLARIZAÇÃO

Charge do Nani (nanihumor)

Luiz Felipe Pondé
Folha

Nos tempos ancestrais, quando crianças brincavam na rua, sem paranoia —hoje, os pais de crianças estão entre os grupos mais paranoicos—, uma brincadeira comum era “polícia e ladrão”. Um grupo de crianças era a polícia e o outro, os ladrões.

Talvez você fosse processado hoje caso brincasse de polícia e ladrão por grupos que defendem o direito de os ladrões serem ladrões, mas o fato é que brincar de polícia e ladrão hoje é assunto para adultos. O nome da brincadeira agora é “polarização”.

REGRESSÃO PSÍQUICA – No fundo, trata-se de uma regressão psíquica em que os sujeitos pretensamente adultos voltam ao pega-pega.

Um traço dessa antiga brincadeira de rua era que não havia um terceiro possível —ou você era polícia, ou você era ladrão. Também no caso da brincadeira de polícia e ladrão para adultos, a polarização, não há uma terceira posição possível. Trata-se, se usarmos expressões chiques, de um não lugar.

Estar no não lugar ou ser um não lugar, implica um processo crescente de silêncio, porque este lugar que é o não lugar tende a ser expulso da linguagem.

SERÃO INIMIGOS – Em breve, estes ocupantes do não lugar serão aqueles que não falaremos o nome por serem inimigos dos dois polos que têm lugar de fala em seus territórios de violência.

Se em algum momento quem ocupa um não lugar foi considerado uma qualidade positiva por não ser reduzido a nenhum dos dois polos regressivos, este logo estará simplesmente em lugar algum por não ter espaço na linguagem pública. E quem não tem espaço na linguagem pública, desaparece com o tempo.

Assim como na brincadeira de rua não havia um terceiro possível, na sua versão para adultos, a tendência é que os dois polos devorem qualquer espaço entre eles. Ou você está conosco, ou com eles. O terceiro possível que se torna, assim, impossível, é sempre um traidor.

JOGO DE LINGUAGEM – A palavra pública na polarização implica um jogo de linguagem em que o terceiro impossível é reduzido a uma forma de linguagem privada, o que por definição não existe, segundo o espírito da filosofia de Wittgenstein.

 

Emudece o mundo que não se define como A ou –A, em que A sou eu e –A, o mal em si. E não há como não emudecer uma vez que, assim como na brincadeira das ruas era impossível não ser polícia ou ladrão, no mundo polarizado dos adultos, a briga é séria, pois o que está em jogo é o monopólio legítimo da violência. E quando este está em jogo, brinca-se para matar.

A catástrofe da política como arte do possível é a igualdade entre política e santidade. Qualquer um que no espectro político não esteja identificado com algum tipo de autodefinido bem será visto como puro pântano, como se dizia nos tempos da revolução francesa acerca do centro político.

LEITURA TEOLÓGICA – Nos tempos ancestrais da leitura teológica de mundo —vale dizer que foi a teologia a primeira a matar a teologia quando esta se fez imanente ao mundo da política—, o terceiro possível era a graça. Apenas ela podia restaurar o mundo. Morto Deus, a política tomou o seu lugar, fazendo-se “des-graça”.

No Brasil de hoje, se você é contra o PT, assume-se que necessariamente você deva ser bolsonarista. O contrário também é fato: se você é contra o bolsonarismo, você deve ser PT. Eis a pobreza de espírito em ação. Não ser nenhum dos dois implica você estar num não lugar.

 

A política como arte do possível está morta quando todos se identificam com uma forma de plenitude moral. Esta arte do possível que é a boa política —que não é a política do bem— só é possível quando os agentes que nela atuam se sabem representantes de seres excluídos, por definição, de qualquer forma de bem que lhe seja intrínseca.

MILITANTES CHATOS – Alguma polarização política sempre existiu quando as pessoas se tornam militantes chatos. Mas, hoje, essa obsessão alcançou níveis antes inimagináveis: até o parecer jurídico no STF é político ou não é nada.

“O juiz que discorda de mim é lixo”, diz a turba. Celebram-se assassinatos de adversários políticos abertamente nas redes e à boca pequena. A polarização destruirá a democracia em breve.

Se a Justiça começar a fechar veículos de imprensa em nome da defesa da democracia, teremos a prova cabal de que tal argumento, “em defesa da democracia”, virou uma chave essencial para a já instalada censura de caráter jurídico no país. A democracia terá degenerado em oligarquia jurídica e num governo desses poucos fazem o que querem com muitos.

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