
Posição de Fux se destacou pelas contradições que expôs
Marcelo Copelli
Revista Fórum
O julgamento que envolve o ex-presidente Jair Bolsonaro e seus aliados, acusados de articular uma tentativa de ruptura institucional, ficará marcado pela polêmica e pela ambiguidade do voto proferido pelo ministro Luiz Fux.
Em um momento em que o Supremo Tribunal Federal é chamado a dar respostas firmes à sociedade, a posição do ministro se destacou não apenas pelo conteúdo técnico, mas sobretudo pelas contradições que expôs.
SEGUNDO PLANO – Ao fundamentar sua decisão em aspectos processuais, como cerceamento de defesa e incompetência do Supremo em julgar réus sem foro por prerrogativa de função, Fux deixou em segundo plano o cerne da questão: a gravidade de um movimento coordenado que buscou, por meios ilícitos e violentos, desestabilizar a ordem democrática. Mais do que um detalhe jurídico, esse silêncio parcial ecoa como uma omissão que relativiza os fatos e enfraquece a credibilidade da corte.
A primeira linha argumentativa de Fux, ancorada na alegação de cerceamento de defesa, merece reflexão. É evidente que a ampla defesa e o contraditório constituem cláusulas pétreas do sistema constitucional brasileiro, e qualquer violação a esses princípios exige reparação.
Contudo, ao sustentar que a defesa foi prejudicada pelo excesso de documentos apresentados, o ministro ignora que essa situação decorre da complexidade natural de investigações que envolvem dezenas de personagens, centenas de mensagens interceptadas e milhares de páginas de provas digitais. Não se trata de um processo comum, mas de um caso emblemático, em que a quantidade de informações reflete a dimensão do ataque perpetrado contra o Estado Democrático de Direito.
CONTEÚDO PROBATÓRIO – Ao colocar essa questão processual como eixo central de seu voto, Fux parece minimizar a relevância do conteúdo probatório, relegando a um segundo plano a materialidade de condutas que, em qualquer análise honesta, configuram uma clara tentativa de golpe.
Outro ponto crítico é a recusa em reconhecer a existência de uma organização criminosa articulada para atentar contra a democracia. O ministro sustentou que faltariam elementos como estabilidade, hierarquia e divisão funcional de tarefas para caracterizar o crime previsto na legislação. Essa interpretação, porém, destoa de evidências que indicam reuniões estratégicas, financiamento logístico, divisão de funções entre atores políticos e militares e até mesmo a elaboração de minutas de decretação de estado de sítio.
Quando se exige uma estrutura rígida, quase empresarial, para admitir a configuração de organização criminosa, corre-se o risco de criar uma exigência probatória inalcançável, blindando articulações políticas que se travestem de espontaneidade, mas que na prática são tão coordenadas quanto um grupo mafioso. A interpretação de Fux, assim, soa excessivamente restritiva e, na prática, favorece a narrativa de que o episódio não passou de uma manifestação desorganizada, quando na realidade havia sinais claros de planejamento.
TENTATIVA DE GOLPE – A contradição mais gritante, entretanto, está no afastamento da ideia de tentativa de golpe. O próprio Supremo, em outras ocasiões, já reconheceu a gravidade ímpar dos atos do 8 de janeiro e os qualificou como um ataque direto à democracia.
Ministros como Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso foram taxativos ao afirmar que o país viveu uma tentativa real de ruptura institucional. Ao destoar desse entendimento e adotar postura mais cética, Fux não apenas desarmoniza a jurisprudência da corte, como transmite ao país a mensagem de que não há consenso nem mesmo dentro do STF sobre o caráter golpista dos fatos.
Essa divergência, embora natural em uma corte plural, ganha contornos preocupantes quando se trata da defesa da ordem constitucional. Em um momento de tamanha fragilidade institucional, a inconsistência não é apenas técnica; é política e simbólica, alimentando a narrativa de setores que negam ou relativizam a gravidade do que ocorreu.
CONSISTÊNCIA – A defesa da Constituição exige consistência. Se o Supremo reconheceu, em reiteradas decisões, que os atos do 8 de janeiro representaram a maior agressão à democracia desde o fim da ditadura, torna-se paradoxal que um de seus ministros, ao julgar os mesmos fatos, relativize sua gravidade com base em supostas insuficiências processuais.
A função do magistrado não é cegar-se às garantias constitucionais, mas aplicá-las sem que se transformem em pretexto para enfraquecer a própria democracia que sustentam. Em outras palavras, não se pode utilizar a Constituição contra ela mesma. O devido processo legal é um instrumento de justiça, não um álibi para obscurecer condutas que colocam em risco a própria existência do sistema democrático.
A consequência imediata desse voto é política: fortalece narrativas de impunidade, dá munição a discursos negacionistas e fragiliza a imagem do Supremo perante a opinião pública. Mas há também uma consequência jurídica de longo prazo: a insegurança sobre a consistência da jurisprudência da corte.
LEGITIMIDADE – Quando um tribunal oscila entre reconhecer e relativizar a gravidade de fatos tão explícitos, transmite a impressão de que os critérios variam conforme o ministro, e não conforme a Constituição. Essa percepção corrói a legitimidade institucional e expõe o Supremo a ataques ainda mais duros de quem já o vê como um ator político, e não como uma corte constitucional.
O voto de Luiz Fux será lembrado menos pela erudição processual que apresentou e mais pelas contradições que carregou. A democracia brasileira, ferida pelos atos golpistas, não pode se dar ao luxo de decisões que relativizam sua defesa.
O país precisa de uma Justiça firme, transparente e coerente; o que se viu, no entanto, foi um gesto hesitante que prefere se refugiar em formalismos jurídicos a enfrentar a realidade dos fatos. Não se trata de pedir condenações sumárias ou atropelo de garantias — trata-se de exigir que a rigidez processual não seja usada como véu para encobrir aquilo que foi, sim, uma tentativa de golpe contra a democracia.