
Ministro abriu o voto no julgamento da trama golpista
Camila Turtelli,
Mariana Muniz
e Daniel Gullino
O Globo
O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), usou seu voto no julgamento de Jair Bolsonaro (PL) e outros sete réus da trama golpista para detalhar os argumentos do seu voto e explicar as provas colhidas ao longo do processo da trama golpista.
Logo na abertura, Moraes ressaltou que a materialidade dos crimes já foi reconhecida em centenas de ações penais relativas ao 8 de janeiro. Segundo ele, não se discute mais se houve tentativa de golpe, mas sim a participação de cada réu nos atos executórios — a cadeia de ações que buscou restringir o Judiciário e impedir a alternância de poder. “Esse julgamento não discute se houve ou não tentativa de golpe. O que se analisa é a autoria das infrações penais imputadas”.
ATO EXECUTÓRIO – Moraes descreveu como documentos e mensagens apreendidos com Augusto Heleno e Alexandre Ramagem se alinharam ao discurso de Jair Bolsonaro contra o sistema eletrônico de votação. Para o relator, a live feita pelo ex-presidente em julho de 2021 já configurou um ato executório, por ter espalhado desinformação e ameaças à Justiça Eleitoral.
“Não é razoável achar normal que um general de quatro estrelas tenha uma agenda com anotações golpistas”, disse Moraes: “Isso não é uma mensagem de um delinquente do PCC para outro. É uma mensagem do diretor da Abin para o então presidente da República”.
Disse ainda o relator: “Atos executórios e já públicos, com graves ameaças à Justiça Eleitoral, que derivam de toda a preparação e divulgação dos órgãos públicos. A live do dia 29/7/2021, a entrevista de 3 de agosto, todos com graves ameaças e grande divulgação de desinformação sobre a Justiça Eleitoral”.
GABINETE DO ÓDIO – Moraes afirmou que a organização criminosa utilizou o chamado gabinete do ódio e as milícias digitais para potencializar as falas de Jair Bolsonaro contra a Justiça Eleitoral. O relator disse que a live de julho de 2020, transmitida por mais de duas horas, foi acompanhada por ministros como Anderson Torres e Augusto Heleno para dar respaldo institucional ao discurso golpista.
“A partir desta live já se verifica a utilização do mecanismo que ficou muito conhecido, o mecanismo utilizado por essa organização criminosa a partir do gabinete do ódio, as denominadas milícias digitais”.
“Não é razoável achar normal que um ministro da Justiça e um general de quatro estrelas apareçam numa transmissão que tinha como objetivo desacreditar a Justiça Eleitoral”.
VOTO ELETRÔNICO – Moraes lembrou que Jair Bolsonaro construiu sua carreira política sendo eleito sucessivas vezes pelo voto eletrônico — inclusive presidente em 2018 —, mas ainda assim alimentou suspeitas sobre o sistema. Para o ministro, o discurso serviu apenas para reforçar a narrativa golpista.
“Alguém que por 40 anos ganhou eleições para deputado, alguém que havia ganho eleições para presidente da República em 2018… por que continua questionando a idoneidade das urnas?”
Moraes rechaçou as nulidades apontadas pelas defesas contra a colaboração de Mauro Cid. Lembrou que o STF já firmou que a PF pode celebrar acordos e que a PGR, mesmo após questionar, terminou por concordar com o uso da delação no oferecimento da denúncia, na instrução e nas alegações finais. Para o ministro, a tentativa de tratar oito depoimentos temáticos do mesmo dia como “oito delações” distorce os autos.
SEM VÍCIO – “A ideia de que houve oito delações contraditórias beira o total desconhecimento dos autos, ou, com todo respeito, litigância de má-fé. A colaboração premiada é meio de obtenção de prova; não há vício no acordo realizado pela polícia e homologado pelo Judiciário”.
O relator descreveu o uso da Abin e do GSI como “centrais” da estrutura golpista para produzir e difundir desinformação contra a Justiça Eleitoral e para monitorar adversários — inclusive autoridades e jornalistas — por meio de sistemas como o FirstMile. Segundo ele, documentos e mensagens apreendidos mostram unidade de desígnios entre Alexandre Ramagem e Augusto Heleno nessa engrenagem.
“A clara utilização dos órgãos de Estado para corromper a República, para corromper a democracia. A Abin passou a funcionar como central de contrainteligência da organização criminosa, criando narrativas falsas contra opositores”.
ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA – Moraes afirmou que foi descoberta uma “verdadeira organização criminosa” que buscou coagir o Supremo e até submeter a Corte ao crivo de um governo estrangeiro. O ministro citou medidas tomadas pelo então presidente Donald Trump, como a cassação de vistos de ministros do STF, sua inclusão na Lei Magnitsky e a imposição de tarifas contra o Brasil.
“Lamentavelmente, no curso da ação penal se constatou a existência de condutas dolosas e conscientes de uma verdadeira organização criminosa, e de forma jamais vista anteriormente em nosso país, passou a agir de covarde e traiçoeira, com a finalidade de tentar coagir o Poder Judiciário, em especial esse Supremo Tribunal Federal e submeter o funcionamento da Corte ao crivo de outro Estado estrangeiro”.
“A história deste Supremo Tribunal Federal demonstra que jamais faltou ou jamais faltará coragem aos seus membros para repudiar as agressões contra os inimigos da soberania nacional, da democracia, do Estado de Direito ou da independência do Poder Judiciário”.
PAPEL ATIVO – Ao rebater a alegação de que teria extrapolado sua função ao intervir na instrução, Moraes defendeu que o juiz tem papel ativo na busca da verdade real. Ele ironizou a estratégia da defesa de contar perguntas feitas na audiência e frisou que o direito ao silêncio foi respeitado.
“A ideia de que o juiz deve ser uma samambaia jurídica durante o processo não tem nenhuma ligação com o sistema acusatório.Há argumentos jurídicos muito mais importantes do que ficar contando o número de perguntas que o juiz fez”.
TENSÃO – Um dos momentos de maior tensão no plenário ocorreu quando Moraes foi interrompido por Luiz Fux. O ministro Flávio Dino havia feito um aparte, a pedido de Moraes, para comentar sobre a operação da PRF, mas Fux reagiu lembrando que havia sido combinado que o voto seria lido sem interrupções.
” Esse aparte foi pedido a mim, e não a Vossa Excelência”, respondeu Moraes. O clima ficou pesado na sessão, com constrangimento geral. Dino encerrou dizendo: “Eu não pedirei (aparte para) Vossa Excelência, pode dormir em paz”.
Fux reforçou: “Os ministros votariam direto sem intervenções de outros colegas, muito embora foi muito própria essa intervenção do ministro Flávio Dino, mas eu gostaria de cumprir aquilo que nós combinamos”.
QUESTÃO SUPERADA – Antes, porém, ao relembrar que a competência do STF — e, subsidiariamente, da Primeira Turma — já havia sido definida no recebimento da denúncia, Moraes reforçou que a questão está superada. Ele fez questão de registrar o voto vencido do ministro Luiz Fux, como gesto de deferência institucional.
“A preliminar de incompetência do Supremo Tribunal Federal, e subsidiariamente da Primeira Turma, foi afastada no momento do recebimento da denúncia por maioria de votos, vencido o eminente ministro Luiz Fux”.
O ministro também recordou que, em 7 de setembro de 2021, Bolsonaro dirigiu uma ameaça direta a Fux, que presidia o STF, forçando o tribunal a ampliar seu esquema de segurança. “Ou o chefe desse poder enquadra o seu, ou esse poder pode sofrer aquilo que não queremos”.
INVASÃO – Moraes lembrou que os atos violentos de 12 de dezembro de 2022, dia da diplomação de Lula e Alckmin, já configuraram mais um passo da trama golpista. Ônibus foram incendiados em Brasília e houve tentativa de invasão à Polícia Federal.
“Assim como no dia 8 de janeiro, no dia 12 se tentou impedir que aqueles que foram legitimamente eleitos pela maioria do eleitorado pudessem ser diplomados e assumissem os seus cargos”.
O relator citou ainda o atentado frustrado de 24 de dezembro, quando uma bomba foi colocada nas proximidades do Aeroporto de Brasília. Para Moraes, o episódio mostra que a escalada golpista estava estruturada e financiada. “Essa bomba não explodiu por pouco. Acarretaria a morte de centenas de pessoas. O Brasil quase voltou a uma ditadura porque uma organização criminosa não soube perder eleições”.
PLANO – Moraes destacou como militares ligados a Bolsonaro elaboraram um plano para assassinar Lula, Alckmin e o então presidente do TSE, Alexandre de Moraes, em operação batizada de “Punhal Verde-Amarelo”. O esquema previa uso de forças especiais e até envenenamento.
“Não é possível normalizar esse retorno a momentos obscuros da história. Documentos e mensagens mostram que esse planejamento foi impresso dentro do Palácio do Planalto e levado ao Alvorada no mesmo dia em que Bolsonaro ordenava manter o discurso de fraude nas eleições”.
NEUTRALIZAÇÃO – Segundo o relator, militares das forças especiais planejavam a neutralização de autoridades e chegaram a adquirir chips e celulares para dificultar o rastreamento. A execução só não avançou porque os comandantes do Exército e da Aeronáutica recusaram aderir ao golpe.
“Toda a operação foi preparada com mapas, cruzamento de celulares e monitoramento de autoridades. Só foi abortada porque não houve adesão das Forças Armadas”.
Moraes destacou ainda que houve monitoramento ilegal de autoridades, incluindo ele próprio e o então presidente eleito Lula, até o fim de 2022. “Não se trata de tentativa de homicídio isolada, mas de atos executórios voltados ao golpe de Estado, com divisão de tarefas e anuência do líder da organização criminosa”.