
Ilustração de Ricardo Cammarota (Folha)
Luiz Felipe Pondé
Folha
O medo da religião hoje está ligado ao medo do mal que a religião pode fazer para a vida psicológica emancipada moderna, assim como o medo do que grupos religiosos podem fazer à democracia. Exemplo claro da primeira situação é a suspeita em relação à submissão de pessoas religiosas aos “funcionários de Deus” —como o teólogo alemão Eugen Drewermann chama o clero.
Exemplo da segunda situação é o medo manifesto por vários setores da sociedade brasileira de que o país se torne refém do crescimento dos evangélicos de cepa conservadora.
NO LADO DE DENTRO – O medo da religião nem sempre teve origem na população exterior às comunidades religiosas. Muitas vezes, e de forma dramática, esse medo veio de dentro dessas mesmas comunidades.
No seio do catolicismo, teve uma face específica que foi o medo da corrente mística dentro da história da espiritualidade católica. A liderança oficial da igreja sempre temeu e acompanhou de perto as pessoas e suas narrativas de experiencias diretas com Deus, denominadas como experiências místicas.
Tanto o medo contemporâneo no Brasil do risco da “irracionalidade evangélica” contaminar a nossa vida social, política, moral e psicológica —nem percamos tempo tentando negar a afirmação acima do medo da irracionalidade evangélica, porque qualquer negação desse tipo seria mentira— quanto o medo da mística dentro da história do catolicismo desde, grosso modo, os séculos 13 e 14, agravando-se ao longo do século 17, ambos são marcados pela identificação do componente de irracionalidade —e da irresponsabilidade moral decorrente— como sendo o núcleo do risco em questão.
MEDO DA MÍSTICA – No caso do medo da mística —meu interesse e objeto de estudo há anos—, devemos olhar para a luta da Igreja Católica para ter controle sobre o que seria ou não uma legítima espiritualidade tocada pelo “conhecimento direto de Deus”.
Essa tentativa de controle da espiritualidade ou da ritualística é denominado pelo historiador francês André Vauchez como a busca pela colonização do sobrenatural europeu por parte do cristianismo católico.
Ela acontece num primeiro momento sobre as formas religiosas pré-cristãs na Europa e, na sequência, sobre as distintas formas de espiritualidades cristãs no mesmo continente.
SANTA INQUISIÇÃO – O leitor que conhece algo do assunto pensará logo na Santa Inquisição, e não estará errado em fazê-lo. Apesar de ela sempre ter sido uma espécie de ministério público da Igreja a aceitar denúncias, processar, investigar e condenar —aqui mais como supremo tribunal da ortodoxia da fé— suspeitos de heresia ou ilegitimidade espiritual, a discussão deste texto não quer chegar a essas minúcias “jurídicas”.
Meu interesse recai sobre o que o grande historiador da mística cristã Bernard McGinnn chama de “A Crise da Mística” no seu livro, cujo título é este em inglês, relançado em 2021.
Essa crise da mística se refere, especificamente, à disputa acerca do quietismo no século 17, que assolou a França, a Itália e a Espanha.
PASSIVIDADE – Quietistas foram, entre muitos outros, o espanhol Miguel de Molinos, condenado pela inquisição e que morreu na prisão depois de nove anos de cárcere na Itália, e os franceses, o arcebispo Fénelon —condenado ao ostracismo—, e Madame Guyon —presa por mais de oito anos. Todos eles tiveram as suas vidas arruinadas.
O quietismo teve esse nome porque afirmava a experiência mística como de absoluta passividade e quietude diante de Deus, num aniquilamento absoluto da alma, conceito que data de autoras como a francesa Marguerite Porete —queimada em Paris em 1310. Quietismo implica um radical silêncio interior, que seria a antessala da experiência mística.
ACIMA DAS LEIS – Os quietistas serão acusados por agentes da hierarquia católica de defensores do antinomianismo. O que é isso? Trata-se de uma acusação muito grave que significa que os místicos estariam acima das leis religiosas ou seculares porque unidos a Deus.
O praticante da oração interior que o aniquila e o leva à liberdade absoluta, sem necessidades de contenção exterior constituída pela instituição ao longo dos séculos, está livre de cometer pecados, livre da necessidade de mortificações ou mesmo da busca de direção espiritual por parte dos membros do clero. Imagine só uma mulher mística assim.
IRRACIONALIDADE – No século 17 do grande racionalismo e posterior iluminismo, a mística quietista —outro termo comum é “a invasão mística”— será vista como um surto de irracionalidade no seio do catolicismo.
A crise da mística à qual se refere McGinn é o descrédito e posterior empobrecimento que se abateram sobre a mística na Igreja Católica desde então.