
Ilustração de Ricardo Cammarotta (Folha)
Luiz Felipe Pondé
Folha
Uma das melhores formas, talvez, de dizer o que é o desencantamento do mundo descrito pelo sociólogo Max Weber, seja dizer que se trata de uma solidão cósmica monstruosa.
Somos uma espécie que construiu, de forma inconsciente, ao longo de milênios, toda uma rede de significados atravessados pelo mistério, por abismos, desertos assustadores e montanhas, por espíritos e deuses, e nós, modernos, os matamos todos. Resta-nos um cemitério ruidoso, mas fantasiado de progresso tecnológico. Resta-nos mendigar formas ridículas de espiritualidade produzida para consumo.
COM OS MORTOS – O livro do jornalista Kaíke Nanne “Como Dançar com os Mortos: Uma Jornada por Cinco Continentes em Busca da Sabedoria Ancestral”, da Maquinaria Editorial, é uma pérola em meio a tanto conteúdo risível e barulhento que nos cerca.
Seguindo o psiquiatra Carl Gustav Jung, aliás, citado pelo autor, poderíamos dizer que, tendo nós modernos destruído essa malha de significados misteriosos, espirituais e cotidianos, restaram-nos a neurose e a psicose como leito da alma.
Desde a grande racionalização moderna —Weber e Jung trataram disso—, restou-nos a solidão de uma espécie que agora fala sozinha, avançando no seu delírio, achando que é dona do cosmo.
SEM ANCESTRALIDADE – Seja para destruí-lo com a ganância do dinheiro, seja para salvá-lo com a arrogância risível do seu ego, em ambos os casos, o animal é o mesmo, o sapiens dilacerado pela perda de sua ancestralidade. Se a espécie sempre foi “borderline”, agora ela é plenamente psicótica —digo eu, não o autor.
Kaíke Nanne, no epílogo, tenta responder uma pergunta essencial e clássica em estudos das religiões: como pode ser que grupos étnicos distantes, espalhados pelos cinco continentes, tenham narrativas míticas tão semelhantes?
Ninguém tem a resposta definitiva, de Jung ao filósofo Gilbert Durand, do historiador Mircea Eliade ao especialista em mitologia Joseph Campbell.
HUMANIDADE COMUM – O conceito de “humanidade comum”, utilizado por arqueólogos como Brian Hayden e Sophie A. De Baune, estabelece que essa humanidade contínua nos liga desde, no mínimo, o paleolítico superior, cerca de 80 mil anos atrás — os números em pré-história são imprecisos, claro — até os dias atuais. ]
Essa “humanidade comum” se reflete em muitas das populações visitadas pelo autor. Algumas delas, presumidamente, vivendo onde vivem, há 30 mil ou 10 mil anos.
Os grupos étnicos visitados habitam várias regiões do mundo, como o alto do Himalaia, onde o ar rarefeito, disperso por vários caminhos, aplaca “o murmúrio interno da mente ansiosa”. Ou o povo amazônico pemon, com sua divindade Makunaíma, inspiração de Mário de Andrade.
OUTROS POVOS – Já os povos do vale do Omo na Etiópia têm ancestralidade que mescla ritos do cristianismo primitivo com judaísmo e se veem como descentes do rei Salomão bíblico e da rainha de Sabá, tudo isso funcionando como uma forma de resistência ao desgaste do tempo histórico.
Os dogons da África ocidental, “o povo das estrelas”, conhecedores de rara astronomia, e seus oráculos da montanha vermelha. Etnias de Madagascar que dançam com seus mortos desenterrados anos depois da morte, mas mumificados entre outros casos.
O POVO ELEITO – As ansiedades humanas se repetem. O cuidado com os ancestrais para que não se transformem em espíritos malignos que destruirão a colheita. Um deus criador que se afasta e abandona sua criação. Cada um desses povos se vê como o “povo eleito” do seu mito étnico e o primeiro a ser criado.
Algum ato catastrófico impõe os sofrimentos da imanência, que deverão ser enfrentados com determinação e com a ajuda, ganha através de sacrifícios e danças, de espíritos intermediários.
A atribuição de uma alma ancestral —o conhecido animismo— a todos os seres existentes, orgânicos e inorgânicos. Animais sagrados. Divisões marcantes de funções segundo os dois sexos, masculino e feminino. Um povo que festeja por sete anos consecutivos, cada dia desses anos, por causa de uma estrela que aparece com essa periodicidade, portanto, os astros “se comunicam” com eles. Deuses dançarinos como imaginou Nietzsche, só que milhares de anos antes dele.
DISCURSO BOBO – Nada disso implica um discurso bobo de “retorno” aos nossos ancestrais. Não temos ancestrais. Espíritos, só aqueles do ouija. A matriz da nossa espiritualidade é a Disney.
Se olharmos de cima nossa civilização, com todo nosso vai e vem frenético diário, talvez fôssemos percebidos como um povo que dança sozinho no cosmo. O universo não nos responde e, se o fizer, será na chave de um surto psicótico desencantado e ridículo.
1) Por falar em Espiritualidade, o Presidente das Assembleias de Deus esteve com o Presidente Lula e o presenteou com belo exemplar da Bíblia…
2) Ou seja, a aproximação do Governo Federal está acontecendo com vistas à 2026…
1) https://www.brasil247.com/regionais/brasilia/em-aproximacao-com-evangelicos-lula-e-aliados-se-reunem-com-religiosos