
A trégua foi uma suspensão do horror, não o início da paz
Marcelo Copelli
Revista Visão (Portugal)
O cessar-fogo entre Israel e o Hamas trouxe um alívio tático, mas não uma solução estratégica. Gaza permanece o epicentro da instabilidade regional — um espelho das contradições do sistema internacional e da fadiga moral de um mundo incapaz de sustentar a paz que proclama. A trégua interrompeu o ciclo imediato de violência, mas não alterou as causas estruturais do conflito: a ausência de confiança, a fragmentação política palestiniana e o impasse entre segurança e soberania.
A chamada “vitória diplomática” resulta, em larga medida, de uma exaustão coletiva. O prolongamento da guerra provocou desgaste interno em Israel, colapso humanitário em Gaza e crescente pressão internacional por uma pausa. A trégua mediada por Washington, Cairo, Doha e Bruxelas foi menos um avanço político do que um travão de emergência — uma suspensão do horror, não o início da paz.
COMPROMISSO – Os desafios do pós-guerra são múltiplos e interdependentes: desmilitarizar o Hamas, retirar as forças israelitas, reconstruir o território e restabelecer uma autoridade política legítima. Cada um desses passos exige coordenação internacional e um compromisso sustentado — algo que, historicamente, tem faltado ao processo de paz no Médio Oriente.
A desmilitarização do Hamas é o ponto mais sensível. O grupo consolidou-se como uma entidade híbrida — simultaneamente militar, religiosa e administrativa —, preenchendo o vazio deixado por um Estado palestiniano inexistente. Um desarmamento total, sem um plano alternativo de governação e apoio social, seria politicamente inviável e socialmente arriscado. A única via possível seria um processo faseado, supervisionado por organismos internacionais, com uma forte componente de apoio humanitário e de reconstrução institucional.
A retirada das forças israelitas representa outro dilema estratégico. Israel argumenta que a permanência militar é necessária para evitar novos ataques, mas essa presença prolongada alimenta a perceção de ocupação e mina qualquer possibilidade de reconciliação. Uma retirada abrupta, por outro lado, criaria um vazio de poder que poderia precipitar o caos. O equilíbrio passa por uma saída gradual, condicionada a garantias multilaterais de segurança — um modelo que exige um bem escasso na região: confiança.
LEGITIMIDADE – questão da liderança em Gaza é igualmente crítica. O Hamas, enfraquecido e deslegitimado, perdeu espaço político. A Autoridade Palestiniana, dominada por Mahmoud Abbas, carece de credibilidade e de ligação real à população local. A proposta de uma administração transitória sob tutela da ONU e da Liga Árabe é vista como uma solução de curto prazo, ainda sem consenso. Sem legitimidade política, a reconstrução corre o risco de se tornar uma mera operação logística, sem impacto social duradouro.
No terreno, a devastação é quase total. A infraestrutura civil colapsou: energia, saneamento, hospitais e escolas foram destruídos. Estima-se que a recuperação ultrapasse os 50 mil milhões de dólares e demore décadas. Mas a reconstrução não será apenas um esforço de engenharia; será um teste à capacidade de ação governativa global. A transparência na gestão dos fundos e a coordenação entre doadores internacionais determinarão se Gaza se reerguerá como território viável ou permanecerá dependente da ajuda externa.
O papel dos Estados Unidos nesta nova fase é central. A postura de Donald Trump, que apoiou um acordo baseado nas resoluções da ONU e aceitou mediadores árabes, representa uma inversão tática face ao seu discurso anterior. É um gesto pragmático, talvez calculado, mas que revela o reconhecimento de que mesmo o poder unipolar necessita de alianças regionais para sustentar a estabilidade. Netanyahu, por sua vez, enfrenta um dilema interno: equilibrar as exigências da segurança com a crescente erosão do apoio popular.
FRAGILIDADE – Gaza é hoje mais do que uma crise humanitária — é um teste aos limites da diplomacia contemporânea. A guerra revelou a incapacidade das potências de conciliar princípios morais com interesses estratégicos e expôs a fragilidade das instituições internacionais. Mostrou também que a paz, quando reduzida a cálculo político, deixa de ser um ideal e torna-se um expediente.
O futuro do Médio Oriente dependerá menos de tratados e mais de vontade política. Nenhuma reconstrução será sustentável sem um pacto mínimo de justiça — territorial, social e histórica. O verdadeiro desafio não é militar nem financeiro, mas ético: determinar se o século XXI será capaz de produzir uma paz que não seja apenas a pausa entre duas guerras.
Gaza simboliza essa encruzilhada. A forma como o mundo responderá à sua destruição dirá mais sobre a civilização contemporânea do que sobre o próprio conflito. Porque, se voltar a cair, não tombará sozinha — arrastará consigo a ilusão de que a humanidade ainda é capaz de aprender com o sofrimento que semeia.