Gaza: o frágil fim de uma guerra que ainda não acabou

Gaza, dois anos depois: A humanidade sob escombros

Lula e Trump: a importância do diálogo que reposiciona o Brasil

Lula esvazia narrativa de exclusividade da direita radical

Marcelo Copelli
Revista Fórum

O recente diálogo entre os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Donald Trump, realizado nesta semana, ultrapassa o campo da diplomacia formal. Trata-se de uma iniciativa política marcada por movimentos estratégicos e senso de realidade, que recoloca o Brasil no centro das discussões internacionais e evidencia, ao mesmo tempo, a solidão crescente da extrema direita — tanto em Brasília quanto em Washington.

Mais do que uma simples troca de palavras entre dois chefes de Estado, o encontro mostrou que, na política internacional contemporânea, ideologias rígidas cedem espaço a acordos instrumentais e interesses concretos.

PARCEIRO ESTRATÉGICO – O tom cordial surpreendeu analistas acostumados a vê-los em polos opostos: o presidente dos Estados Unidos, sob pressão por resultados econômicos domésticos e tensões comerciais com a China, identificou no Brasil um parceiro estratégico; Lula, por sua vez, interpretou o momento como uma oportunidade de ampliar o canal de diálogo com Washington sem renunciar à defesa da soberania nacional.

Segundo fontes do Departamento de Estado e da chancelaria brasileira, a pauta incluiu temas como energia, biocombustíveis e reindustrialização, além de uma sinalização sobre a possível revisão de tarifas que afetam produtos brasileiros, como café e aço. Esses tópicos demonstram que o contato não se limitou à retórica: desde o início, houve tentativa de convergir interesses econômicos com impacto direto sobre setores exportadores e cadeias produtivas nacionais.

Politicamente, o efeito imediato é claro. Ao estabelecer um canal direto com Washington, Lula esvazia a narrativa de exclusividade que parte da direita radical buscava manter em torno das relações com os Estados Unidos. Figuras que se apresentavam como pontes privilegiadas — como o deputado Eduardo Bolsonaro — veem seu protagonismo reduzido: a centralidade passa a ser institucional e presidencial, e não mais dependente de canais informais.

PERDA DE LEGITIMIDADE – O bolsonarismo, embora ainda detenha influência em setores do eleitorado e do Congresso, perde, com este episódio, parte de sua legitimidade no plano externo. Convém distinguir ato político de resultado concreto.

A conversão do entendimento diplomático em medidas práticas — como redução tarifária, acordos de cooperação setorial e mecanismos de acompanhamento técnico — dependerá de negociações prolongadas. Nos Estados Unidos, tais decisões enfrentam o crivo do Congresso e a resistência de setores industriais; no Brasil, o desafio será transformar o capital diplomático do diálogo em ganhos tangíveis para a economia.

Para fortalecer a análise pública, será fundamental observar indicadores objetivos: comunicados oficiais com prazos e metas, deliberações sobre tarifas, reações dos mercados e associações setoriais, além de sondagens que avaliem o impacto político interno dessa iniciativa.

TENDÊNCIA GLOBAL – Anne Applebaum, colunista da revista norte-americana The Atlantic, observou que “o novo realismo de Lula ecoa uma tendência global: líderes que compreendem que o poder hoje está na habilidade de conversar com adversários, e não apenas com aliados”. É uma leitura que traduz com precisão o espírito dessa movimentação diplomática — um aceno à política da convergência, mais do que à diplomacia da confrontação.

A aproximação entre Lula e Trump representa um reposicionamento estratégico do Brasil: sinaliza capacidade de interlocução ampla e pragmática, enfraquece o apelo de discursos personalistas e devolve ao país um papel relevante no diálogo global.

Lula, ao reabrir uma via direta com o presidente dos Estados Unidos, envia uma mensagem ao mundo e ao Brasil: o país está de volta à mesa onde se decide o futuro — e, desta vez, sem depender dos extremos que tentaram sequestrar a sua voz.

Gaza sitiada: fome, guerra e a cumplicidade do silêncio europeu

A inócua ameaça de Eduardo Bolsonaro às eleições de 2026

A declaração do deputado repete um padrão: a política da ameaça

Marcelo Copelli
Revista Fórum

O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) utilizou a rede social X (antigo Twitter) para lançar mais uma ameaça direta ao processo eleitoral brasileiro. Ao afirmar que “sem anistia, não haverá eleição em 2026”, ele condicionou a realização do pleito presidencial à aprovação de um projeto de lei que favorece seu pai, o ex-presidente Jair Bolsonaro, e os envolvidos nos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023.

Não se trata de mera retórica. É mais um episódio de coação política, inserido na estratégia recorrente da extrema direita de testar os limites institucionais e corroer a confiança no regime democrático.

IMPUNIDADE – A anistia em debate busca apagar crimes que atingiram o núcleo da ordem constitucional: invasões violentas de prédios dos Três Poderes e tentativas explícitas de subverter o Estado de Direito. Na prática, equivale a institucionalizar a impunidade, desautorizar o Judiciário e premiar quem atentou contra a soberania popular.

Jair Bolsonaro já foi declarado inelegível até 2030 pelo Tribunal Superior Eleitoral, e uma anistia ampla não reverteria automaticamente essa condição. O que se vê é um esforço desesperado de setores bolsonaristas para forçar uma reabilitação política fora das regras legais.

A declaração de Eduardo Bolsonaro repete um padrão: a política da ameaça. Quando não é a defesa da anistia, é a evocação de “crises institucionais”, a sugestão de intervenção militar ou a deslegitimação das urnas eletrônicas.

AUTORITARISMO – Esse expediente não é apenas tático: é uma engrenagem autoritária que se alimenta da fabricação constante de inimigos e complôs imaginários. Trata-se de uma prática herdada de regimes fascistas, cujo método era corroer a credibilidade das instituições, intimidar opositores e manter mobilizada uma base radicalizada pelo medo.

Assim como no autoritarismo do século XX, a extrema direita atual reduz a política a uma lógica de guerra permanente contra inimigos, em que a derrota eleitoral é tratada como fraude e as regras só valem quando favorecem o próprio grupo. É a lógica da ameaça constante, que substitui o debate democrático pela imposição pela força ou pela intimidação.

O efeito dessa retórica é corrosivo. Ao insinuar que eleições podem ser suspensas, ainda que juridicamente inviável, Eduardo Bolsonaro contribui para semear desconfiança, reforçar teorias conspiratórias e preparar terreno para novos surtos de violência política.

TRAIÇÃO – Quando um parlamentar ameaça eleições, trai o sentido do mandato recebido: representar o povo dentro das regras constitucionais. Ao agir assim, pratica um atentado simbólico contra o regime democrático e confirma que seu campo político não busca disputar poder em igualdade de condições, mas sim capturar ou destruir instituições que não controla.

A democracia brasileira, embora jovem e marcada por crises, resistiu a ofensivas mais duras porque suas instituições se mantiveram firmes e a sociedade se recusou a abrir mão de conquistas fundamentais.

O desafio agora é não normalizar declarações que flertam com o golpismo. Liberdade de expressão não é salvo-conduto para corroer pilares constitucionais. Por isso, essa intimidação deve ser enfrentada com firmeza institucional e vigilância cívica.

ELEIÇÕES LIVRES – Em 2026, o Brasil terá novamente a oportunidade de reafirmar seu compromisso com eleições livres, transparentes e regulares. Para isso, é preciso rejeitar projetos que legalizem a impunidade e denunciar discursos que tentam sequestrar a soberania do voto.

A democracia não pode ser refém de ultimatos. Ela se fortalece quando resiste — e derrota — aqueles que pretendem transformá-la em moeda de barganha.

Trump, Netanyahu e o veto à Palestina: a geopolítica da exclusão

Proposta de Trump não oferece dignidade, apenas gestão

Marcelo Copelli
Revista Visão (Portugal)

A recente proposta do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, para encerrar o conflito entre Israel e o Hamas em Gaza volta a expor os impasses históricos em torno da questão palestina e a revelar os verdadeiros interesses que moldam a política internacional.

Trump afirmou que o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, concordou com a ideia de criar em Gaza um “comitê palestino de transição, tecnocrático e apolítico”, formado por especialistas internacionais e representantes locais qualificados, responsável por administrar temporariamente a região. Ao mesmo tempo, criticou a posição da maioria dos países que apoiam a criação de um Estado da Palestina, reafirmando a tradicional recusa norte-americana e israelense em aceitar essa solução.

REIVINDICAÇÃO HISTÓRICO – O que se apresenta como proposta de paz soa, na prática, como um adiamento indefinido de uma reivindicação histórica. Ao substituir a soberania por um arranjo tutelado, os Estados Unidos e Israel mantêm o essencial: o controle político e estratégico sobre os territórios, impedindo que os árabes da região se constituam como Estado pleno, com fronteiras reconhecidas, governo eleito, capacidade de autodefesa e representação internacional.

A ideia de um comitê “apolítico” é, na verdade, profundamente política, porque retira da população local a possibilidade de escolher quem a governa e delega a gestão de suas vidas cotidianas a tecnocratas sem legitimidade popular.

O argumento central para negar o Estado continua a ser o da segurança. Israel insiste que não pode permitir a emergência de um vizinho soberano que, em sua visão, poderia servir de plataforma para novos ataques. Mas, ao colocar toda a ênfase na segurança, ignora-se que a ocupação prolongada, a ausência de soberania e a negação de direitos são, por si mesmas, fatores permanentes de instabilidade e radicalização.

RAZÕES TERRITORIAIS – A recusa também se apoia em razões territoriais e ideológicas: muitos setores do Estado israelense não admitem abrir mão de partes estratégicas da Cisjordânia, nem aceitar um rival com pretensões equivalentes de legitimidade histórica.

Para os Estados Unidos, as razões são múltiplas. No plano geopolítico, Washington mantém a pretensão de ser árbitro da região, mas raramente se posiciona de forma a contrariar os interesses de Israel. Internamente, a política em relação ao conflito é atravessada por pressões eleitorais, pelo peso do lobby pró-Israel e pelo discurso religioso de parcelas do eleitorado.

Externamente, a Casa Branca procura equilibrar-se entre o apoio incondicional a Israel e a necessidade de não perder aliados no mundo árabe, onde a causa da autodeterminação continua a ressoar fortemente. Não reconhecer a soberania reivindicada, portanto, é também uma forma de manter influência, controlar o ritmo das negociações e evitar compromissos que possam ser politicamente custosos.

SEM SOBERANIA – O problema é que a proposta de Trump não oferece dignidade, apenas gestão. Sem governo eleito, sem soberania real e sem voz própria, Gaza correria o risco de transformar-se em um protetorado indefinido, onde milhões de pessoas viveriam sob a tutela de organismos externos.

A história mostra que arranjos desse tipo tendem a prolongar os conflitos em vez de resolvê-los, porque não lidam com a raiz do problema: a falta de reconhecimento do direito de autodeterminação. Além disso, uma solução imposta de cima para baixo, que desconsidera a vontade popular, está condenada a ser vista como ilegítima, alimentando ainda mais ressentimento e violência.

Enquanto se discute em mesas diplomáticas, a realidade em Gaza continua a ser de destruição, deslocamento e sofrimento humano. Para aquele povo, a ideia de Estado não é um capricho, mas a condição mínima para reconstruir escolas, hospitais, energia, infraestrutura e, sobretudo, para recuperar a dignidade de viver com autonomia. Negar essa aspiração é condená-los a uma existência de dependência e humilhação, em que até os direitos mais básicos ficam sujeitos à boa vontade de outros.

SEM JUSTIFICATIVA – Os interesses estratégicos de Israel e dos Estados Unidos explicam a recusa, mas não a justificam. Uma paz verdadeira só poderá nascer de uma solução que reconheça plenamente a soberania reivindicada, que respeite o direito internacional e que permita aos dois povos coexistirem em condições de igualdade. O plano de Trump, ao contrário, parece apenas adiar indefinidamente essa possibilidade, criando uma gestão temporária que pode transformar-se em permanente e perpetuar a lógica da exclusão.

No fundo, o que está em jogo é a escolha entre oferecer dignidade ou impor tutela. Negar um Estado àquele povo é manter a região refém do medo, da insegurança e da desigualdade. Reconhecê-lo seria um passo arriscado para alguns, mas indispensável para qualquer paz que mereça esse nome.

Sem justiça e sem soberania, a paz será sempre uma miragem, e propostas como a que agora se apresenta não passam de sombras de solução, incapazes de oferecer futuro a uma nação que há décadas espera por ele.

Direita em ruínas: divisão e isolamento corroem projeto bolsonarista

Trump na ONU: retórica em chamas, fatos em ruínas

Políticos blindados: O golpe da PEC contra a democracia no Brasil

PEC da Blindagem fragiliza o Estado de Direito

Marcelo Copelli
Revista Fórum

A aprovação da chamada PEC da Blindagem pela Câmara dos Deputados marca um dos episódios mais graves de descompromisso com a ética e a responsabilização política no Brasil contemporâneo.

A proposta altera a Constituição de forma a dificultar drasticamente a investigação e a responsabilização de parlamentares, transferindo para o próprio Legislativo a prerrogativa de autorizar processos criminais contra deputados e senadores.

CONQUISTAS – Essa mudança reverte conquistas importantes da Emenda Constitucional 35/2001, que retirou do Congresso a competência exclusiva de filtrar investigações, justamente para impedir que interesses políticos se sobrepusessem ao direito à Justiça.

A exigência de autorização prévia, por votação secreta, da maioria absoluta da Câmara ou do Senado para que um parlamentar seja processado cria um mecanismo que transforma o Legislativo em barreira à responsabilização, favorecendo a ausência de punição e corroendo a credibilidade do sistema jurídico. Além do filtro político para processos, a PEC amplia o foro privilegiado, estendendo-o a presidentes nacionais de partidos com representação no Congresso — medida inédita e sem paralelo em democracias consolidadas.

Outro ponto alarmante é a restrição à prisão de parlamentares. A proposta limita a medida a crimes inafiançáveis e ainda exige autorização legislativa, mesmo em casos em que a urgência demandaria resposta imediata da Justiça. Na prática, ergue-se uma barreira quase intransponível, tornando inviável a aplicação célere da lei contra quem ocupa cargos políticos, mesmo diante de indícios claros de criminalidade.

ARGUMENTO – A desfaçatez da classe política que apoiou a PEC é evidente. O argumento de que a medida protegeria o exercício do mandato não se sustenta: não há evidências de que a atividade parlamentar tenha sido prejudicada pelo sistema atual de responsabilização.

O que se revela é um pacto de conveniência. Trata-se de corporativismo em sua forma mais crua, um esforço calculado para blindar parlamentares em meio a um cenário já marcado por denúncias de corrupção, irregularidades administrativas e condutas que beiram a criminalidade.

O processo de aprovação evidenciou a amplitude desse alinhamento. A decisão em dois turnos, mesmo sob intensa controvérsia, mostrou que a autopreservação foi colocada acima da ética e da responsabilidade institucional.

ESTADO DE DIREITO – As implicações para a democracia são profundas. Ao criar obstáculos artificiais à responsabilização penal, a PEC da Blindagem dilui o princípio da igualdade perante a lei e fragiliza o Estado de Direito. A percepção de que o Parlamento se protegeu de investigações alimenta o descrédito popular e reforça a ideia de que a política brasileira se converteu em um círculo fechado de privilégios, distante da sociedade que deveria representar.

Além disso, ao reduzir a capacidade de ação do Judiciário em situações urgentes, a proposta abre espaço para a infiltração de práticas ilícitas e a consolidação de redes de corrupção sistêmica, comprometendo a governabilidade e a transparência que deveriam sustentar uma democracia madura.

A reação da sociedade civil e da imprensa tem sido vigorosa. Ampla mobilização nas redes sociais denunciou a medida como um manto de irresponsabilidade institucional. Pesquisas e monitoramentos mostram que uma parcela expressiva da opinião pública percebe a PEC como gesto de autoproteção parlamentar — um recado de que, para muitos congressistas, preservar privilégios pessoais vale mais do que honrar responsabilidades perante a população.

ALERTA – Esse sentimento de frustração e revolta social é um alerta para os próximos passos do Senado, que agora tem a chance de restabelecer o equilíbrio entre os Poderes e proteger os fundamentos constitucionais.

A PEC da Blindagem não é apenas um retrocesso jurídico; é também uma afronta simbólica. Expõe um Legislativo disposto a sacrificar princípios republicanos em nome da autoproteção, desconsiderando o impacto devastador sobre a confiança pública nas instituições.

A sociedade, os tribunais e os órgãos de controle devem permanecer vigilantes, exigindo transparência, ética e responsabilização efetiva. Caso contrário, o Congresso corre o risco de se tornar um espaço autorregulado, imune à fiscalização e alheio às demandas por justiça e equidade — um golpe silencioso contra a legitimidade democrática.

MARCO PERIGOSO – Em última instância, a PEC da Blindagem representa um marco perigoso. Está em jogo se a política nacional continuará a servir ao interesse coletivo ou se será reduzida a um mecanismo de proteção corporativa.

O Senado e a sociedade civil carregam a responsabilidade de impedir que o Parlamento se converta em reduto de irresponsabilidade, reafirmando que, independentemente do cargo ocupado, todos devem responder perante a Justiça.

Se essa tendência não for revertida, consolidar-se-á um precedente corrosivo, capaz de afastar ainda mais a política brasileira dos princípios éticos e democráticos que deveriam norteá-la.

STF dá resposta histórica ao golpismo

Postura fortalece não apenas o Judiciário, mas a soberania

Marcelo Copelli
Estadão

No último dia 11 de setembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) escreveu um capítulo inédito na história republicana ao condenar o ex-presidente Jair Bolsonaro e parte de sua cúpula militar por tentativa de golpe de Estado. Pela primeira vez em 135 anos de República, um presidente eleito foi responsabilizado penalmente por atentar contra a ordem constitucional.

A decisão rompeu um ciclo de permissividade que, em diferentes momentos, alimentou aventuras autoritárias e deixou sem resposta jurídica tentativas de ruptura democrática. O recado agora é cristalino: não há espaço para impunidade quando o alvo é a própria democracia.

PACTO NORMATIVO – Do ponto de vista jurídico, o julgamento reafirmou que a Constituição de 1988 não é uma carta meramente programática, mas um pacto normativo que exige efetividade. O STF reconheceu que a mobilização de militares, a convocação de atos antidemocráticos e o uso de estruturas do Estado para corroer as instituições configuraram não apenas retórica política, mas atos concretos orientados à tentativa de golpe.

A Corte aplicou a doutrina do “iter criminis” — o caminho do crime — para mostrar que o direito penal democrático não espera a consumação da ruptura; basta a preparação organizada e dirigida à subversão da ordem constitucional para que a sanção seja legítima.

Nesse sentido, o Brasil se alinhou à jurisprudência de tribunais internacionais que responsabilizaram governantes por atentados contra a democracia antes que o caos se instalasse.

BLINDAGEM – O simbolismo é igualmente profundo. Condenar o ex-presidente Jair Bolsonaro, três generais e um almirante significou romper a blindagem histórica das Forças Armadas em relação a transgressões contra a ordem civil. A decisão ecoa a lição de que farda não é salvo-conduto e de que o poder militar está submetido à soberania popular expressa nas urnas.

O voto da ministra Cármen Lúcia, ao definir o julgamento como encontro do Brasil com o passado, o presente e o futuro, sublinhou a dimensão histórica do processo. Já o ministro Flávio Dino reforçou que o pacto republicano não admite tutela de quartéis, lembrando que a função constitucional das Forças Armadas é defender a Pátria, não arbitrar o destino da política.

Outro ponto decisivo foi a reafirmação da soberania nacional. Em meio a pressões externas e a declarações hostis vindas de lideranças internacionais, especialmente do governo norte-americano sob Donald Trump, o Supremo não cedeu. O tribunal sustentou sua decisão em provas robustas, preservando a independência da Justiça brasileira.

ORDEM CONSTITUCIONAL – A mensagem foi clara: o Brasil não admite que sua ordem constitucional seja relativizada por pressões geopolíticas. Essa postura fortalece não apenas o Judiciário, mas a própria noção de soberania, elemento essencial para qualquer democracia que se pretenda madura.

As consequências políticas também são relevantes. A decisão não dissolve o bolsonarismo, que seguirá mobilizando a narrativa da perseguição e testando a resiliência institucional. Porém, a condenação estabeleceu o precedente pedagógico de que a tentativa de golpe deixou de ser um cálculo de baixo risco. O ônus jurídico, político e pessoal passou a ser elevado, desestimulando aventuras similares. Mais que punir indivíduos, o STF fixou um marco dissuasório para futuras gerações.

DIVISOR DE ÁGUAS – O 11 de setembro de 2025 será lembrado como divisor histórico, comparável à redemocratização de 1985 e à promulgação da Constituição de 1988. Se representará o triunfo definitivo da democracia ou apenas mais uma etapa da luta contra o autoritarismo, só o tempo dirá.

Mas a lição imediata é clara: as instituições brasileiras mostraram maturidade, o Supremo assumiu seu papel de guardião da Constituição e o país reafirmou que a democracia não é negociável.

Fux e a tentativa de golpe: relativizando a ruptura institucional

Posição de Fux se destacou pelas contradições que expôs

Marcelo Copelli
Revista Fórum  

O julgamento que envolve o ex-presidente Jair Bolsonaro e seus aliados, acusados de articular uma tentativa de ruptura institucional, ficará marcado pela polêmica e pela ambiguidade do voto proferido pelo ministro Luiz Fux.

Em um momento em que o Supremo Tribunal Federal é chamado a dar respostas firmes à sociedade, a posição do ministro se destacou não apenas pelo conteúdo técnico, mas sobretudo pelas contradições que expôs.

SEGUNDO PLANO – Ao fundamentar sua decisão em aspectos processuais, como cerceamento de defesa e incompetência do Supremo em julgar réus sem foro por prerrogativa de função, Fux deixou em segundo plano o cerne da questão: a gravidade de um movimento coordenado que buscou, por meios ilícitos e violentos, desestabilizar a ordem democrática. Mais do que um detalhe jurídico, esse silêncio parcial ecoa como uma omissão que relativiza os fatos e enfraquece a credibilidade da corte.

A primeira linha argumentativa de Fux, ancorada na alegação de cerceamento de defesa, merece reflexão. É evidente que a ampla defesa e o contraditório constituem cláusulas pétreas do sistema constitucional brasileiro, e qualquer violação a esses princípios exige reparação.

Contudo, ao sustentar que a defesa foi prejudicada pelo excesso de documentos apresentados, o ministro ignora que essa situação decorre da complexidade natural de investigações que envolvem dezenas de personagens, centenas de mensagens interceptadas e milhares de páginas de provas digitais. Não se trata de um processo comum, mas de um caso emblemático, em que a quantidade de informações reflete a dimensão do ataque perpetrado contra o Estado Democrático de Direito.

CONTEÚDO PROBATÓRIO – Ao colocar essa questão processual como eixo central de seu voto, Fux parece minimizar a relevância do conteúdo probatório, relegando a um segundo plano a materialidade de condutas que, em qualquer análise honesta, configuram uma clara tentativa de golpe.

Outro ponto crítico é a recusa em reconhecer a existência de uma organização criminosa articulada para atentar contra a democracia. O ministro sustentou que faltariam elementos como estabilidade, hierarquia e divisão funcional de tarefas para caracterizar o crime previsto na legislação. Essa interpretação, porém, destoa de evidências que indicam reuniões estratégicas, financiamento logístico, divisão de funções entre atores políticos e militares e até mesmo a elaboração de minutas de decretação de estado de sítio.

Quando se exige uma estrutura rígida, quase empresarial, para admitir a configuração de organização criminosa, corre-se o risco de criar uma exigência probatória inalcançável, blindando articulações políticas que se travestem de espontaneidade, mas que na prática são tão coordenadas quanto um grupo mafioso. A interpretação de Fux, assim, soa excessivamente restritiva e, na prática, favorece a narrativa de que o episódio não passou de uma manifestação desorganizada, quando na realidade havia sinais claros de planejamento.

TENTATIVA DE GOLPE – A contradição mais gritante, entretanto, está no afastamento da ideia de tentativa de golpe. O próprio Supremo, em outras ocasiões, já reconheceu a gravidade ímpar dos atos do 8 de janeiro e os qualificou como um ataque direto à democracia.

Ministros como Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso foram taxativos ao afirmar que o país viveu uma tentativa real de ruptura institucional. Ao destoar desse entendimento e adotar postura mais cética, Fux não apenas desarmoniza a jurisprudência da corte, como transmite ao país a mensagem de que não há consenso nem mesmo dentro do STF sobre o caráter golpista dos fatos.

Essa divergência, embora natural em uma corte plural, ganha contornos preocupantes quando se trata da defesa da ordem constitucional. Em um momento de tamanha fragilidade institucional, a inconsistência não é apenas técnica; é política e simbólica, alimentando a narrativa de setores que negam ou relativizam a gravidade do que ocorreu.

CONSISTÊNCIA – A defesa da Constituição exige consistência. Se o Supremo reconheceu, em reiteradas decisões, que os atos do 8 de janeiro representaram a maior agressão à democracia desde o fim da ditadura, torna-se paradoxal que um de seus ministros, ao julgar os mesmos fatos, relativize sua gravidade com base em supostas insuficiências processuais.

A função do magistrado não é cegar-se às garantias constitucionais, mas aplicá-las sem que se transformem em pretexto para enfraquecer a própria democracia que sustentam. Em outras palavras, não se pode utilizar a Constituição contra ela mesma. O devido processo legal é um instrumento de justiça, não um álibi para obscurecer condutas que colocam em risco a própria existência do sistema democrático.

A consequência imediata desse voto é política: fortalece narrativas de impunidade, dá munição a discursos negacionistas e fragiliza a imagem do Supremo perante a opinião pública. Mas há também uma consequência jurídica de longo prazo: a insegurança sobre a consistência da jurisprudência da corte.

LEGITIMIDADE – Quando um tribunal oscila entre reconhecer e relativizar a gravidade de fatos tão explícitos, transmite a impressão de que os critérios variam conforme o ministro, e não conforme a Constituição. Essa percepção corrói a legitimidade institucional e expõe o Supremo a ataques ainda mais duros de quem já o vê como um ator político, e não como uma corte constitucional.

O voto de Luiz Fux será lembrado menos pela erudição processual que apresentou e mais pelas contradições que carregou. A democracia brasileira, ferida pelos atos golpistas, não pode se dar ao luxo de decisões que relativizam sua defesa.

O país precisa de uma Justiça firme, transparente e coerente; o que se viu, no entanto, foi um gesto hesitante que prefere se refugiar em formalismos jurídicos a enfrentar a realidade dos fatos. Não se trata de pedir condenações sumárias ou atropelo de garantias — trata-se de exigir que a rigidez processual não seja usada como véu para encobrir aquilo que foi, sim, uma tentativa de golpe contra a democracia. 

Anistia em debate: Como o Congresso quer apagar o 8 de Janeiro

Manobra busca blindar Bolsonaro e seus aliados

Marcelo Copelli
Revista Fórum

O debate sobre a anistia irrompe novamente no centro da cena política brasileira. O termo, que carrega em si a ideia de perdão e esquecimento, foi resgatado não apenas como um instrumento jurídico, mas como estratégia política de sobrevivência. E, embora se fale em “pacificação nacional” e “reconciliação do país”, o que está em jogo, na prática, é a tentativa de salvar o ex-presidente Jair Bolsonaro e proteger seu círculo mais próximo das consequências penais e políticas dos atos golpistas de 8 de Janeiro de 2023.

Por trás da retórica de “virar a página”, move-se uma engrenagem de poder cujo real objetivo é blindar o ex-mandatário e seus aliados, numa disputa direta com o Supremo Tribunal Federal e com a própria lógica constitucional. No Congresso, a articulação em torno da anistia ganhou fôlego com projetos de lei que buscam apagar a punibilidade dos crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e de tentativa de golpe de Estado. 

MANOBRA – Sob a justificativa de proteger “manifestantes” ou “inocentes arrastados pelo contexto”, a proposta abrange, na prática, lideranças políticas e financiadores que hoje enfrentam processos no STF. Trata-se, portanto, menos de um gesto magnânimo em direção à sociedade e mais de uma manobra para interromper o cerco judicial que já alcança Bolsonaro e poderá atingir figuras centrais de sua campanha e de seu governo. A insistência nesse debate revela que não se trata de um esforço para acalmar ânimos, mas de uma operação política com endereço certo.

Do ponto de vista constitucional, a anistia é prerrogativa do Congresso, mas não ilimitada. A Carta de 1988 veda expressamente o perdão para crimes de tortura, terrorismo, tráfico de drogas e crimes hediondos. Embora os crimes imputados aos réus de 8 de Janeiro não tenham sido enquadrados formalmente como terrorismo, a essência dos atos — a tentativa de derrubar a ordem democrática pela força — se aproxima daquilo que a Constituição quis proteger de forma absoluta.

É aqui que emerge a tese da inconstitucionalidade material: ainda que o texto não vede de forma literal, conceder anistia a crimes que atacam o coração da democracia violaria os princípios fundamentais da República, a separação dos Poderes e o dever estatal de preservar o Estado Democrático de Direito.

“RASURA CONSTITUCIONAL” – Não por acaso, juristas críticos à anistia lembram que ela equivaleria a uma “rasura constitucional” disfarçada de acordo político. A comparação com a Lei de Anistia de 1979 não se sustenta, uma vez que, naquele contexto, havia uma transição da ditadura para a democracia, e a discussão girava em torno de como permitir a abertura política.

Hoje, a situação é inversa: discute-se perdoar crimes cometidos contra uma democracia consolidada, em pleno funcionamento institucional, com todas as garantias constitucionais em vigor. O que em 1979 foi apresentado como ponte para o futuro, em 2025 soa como um atalho para o retrocesso.

O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, já consolidou sentenças contra envolvidos nos atos. Ao intervir com uma anistia ampla, o Congresso não apenas enfraqueceria essa resposta, mas passaria a perigosa mensagem de que a democracia pode ser negociada no balcão da política. Além disso, transformaria o esforço de responsabilização em peça descartável, sujeita ao humor das maiorias parlamentares.

IMPUNIDADE – Politicamente, o argumento da pacificação é sedutor, mas, sem memória e garantias de não repetição, se reduz a mero sinônimo de impunidade. O que se busca, ratifique-se, é proteger Bolsonaro da inelegibilidade, das condenações e do estigma de ter liderado ou incentivado um movimento contra as instituições. A anistia seria o mecanismo de salvação para recolocar o ex-presidente no jogo político de 2026, ainda que ao custo de deslegitimar a Constituição de 1988 e enfraquecer a autoridade do Supremo.

Mais grave ainda é a erosão da confiança pública nas instituições. Para os milhões de brasileiros que assistiram, estarrecidos, às imagens de prédios históricos depredados, de obras de arte destruídas e de símbolos da República violados, a mensagem de um perdão coletivo soaria como traição. Seria como dizer que o Congresso não enxerga gravidade em crimes que, em qualquer democracia madura, seriam tratados como uma linha vermelha intransponível. Esse desgaste simbólico pode ser mais perigoso do que as consequências jurídicas imediatas, pois mina o pacto de confiança entre cidadãos e Estado.

Outro ponto que deve ser considerado é o precedente político. Uma anistia agora poderia abrir caminho para que futuros ataques às instituições sejam encarados como apostas de baixo risco. Testa-se o limite da violência, avalia-se a correlação de forças no Congresso e, se houver maioria política, o perdão é concedido.

DIMENSÃO INTERNACIONAL – A democracia não pode se permitir normalizar a lógica da reincidência, em que atos contra a ordem constitucional passam a ser tratados como meras manobras de pressão, passíveis de absolvição a cada ciclo eleitoral. Há também a dimensão internacional. O Brasil, como signatário de tratados de direitos humanos e integrante de organismos multilaterais, assumiu o compromisso de punir ataques contra o Estado de Direito e proteger suas instituições. Uma anistia ampla e indiscriminada para crimes dessa magnitude seria interpretada como sinal de fragilidade institucional e poderia comprometer a imagem do país como democracia estável.

Em tempos de crescente autoritarismo global, a indulgência em relação a atos golpistas colocaria o Brasil na contramão das nações que fortalecem suas defesas contra ameaças internas. Assim, é importante lembrar que a verdadeira pacificação não se alcança pelo esquecimento, mas pela responsabilização.

SALVO-CONDUTO – Países que enfrentaram períodos de instabilidade democrática só conseguiram construir estabilidade duradoura quando combinaram justiça com memória e garantias de não repetição. O que se propõe hoje no Congresso não é um pacto de reconciliação, mas um salvo-conduto para que lideranças políticas escapem das consequências de seus atos.

Em vez de curar feridas, a anistia ampliaria as cicatrizes. A democracia brasileira já foi atacada no fatídico 8 de Janeiro; cabe agora ao país decidir se irá se defender com firmeza ou se permitirá que um acordo político de ocasião reescreva, em nome da conveniência, a sua própria Constituição.

Bolsonaro no banco dos réus: O legado de um Brasil que resiste

O julgamento do ex-presidente é  um divisor de águas

Marcelo Avelino Copelli
Revista Fórum  

O Brasil atravessa um momento decisivo em sua história democrática. O julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro, previsto para o próximo dia 2 de setembro, não trata apenas da responsabilização de um ex-chefe de governo acusado de graves crimes contra a democracia, mas também da reafirmação da força das instituições e da capacidade do país de resistir ao autoritarismo. Refere-se a um processo que ultrapassa o indivíduo e alcança a própria essência do Estado de Direito.

Bolsonaro enfrenta acusações graves, incluindo tentativa de golpe de Estado, organização criminosa armada e tentativa de abolição violenta do regime democrático. Se condenado, poderá enfrentar até quatro décadas de prisão. A Procuradoria-Geral da República tem sido incisiva na acusação, enquanto o Supremo Tribunal Federal (STF) demonstra firmeza inabalável em suas decisões.

CONTRAPONTO – Essa postura é um contraponto fundamental diante de um histórico recente em que setores conservadores da política nacional testaram os limites da democracia, ora flertando com a ruptura institucional, ora pressionando o Judiciário em busca de impunidade.

Recentemente, o ministro Alexandre de Moraes determinou o reforço da vigilância na residência de Bolsonaro após a descoberta de um rascunho de pedido de asilo político na Argentina e informações sobre uma possível fuga para a Embaixada dos Estados Unidos.

Embora a defesa alegue que o documento não tem validade, o episódio expôs a fragilidade e imprevisibilidade do ex-presidente. Diante do peso das acusações, ele buscou alternativas fora do país, o que compromete sua imagem de “estadista”. A tentativa de transformar uma estratégia de fuga em argumento de perseguição política revela mais sobre a fragilidade da defesa do que sobre qualquer suposta arbitrariedade do Judiciário.

RESISTÊNCIA – A crise que se desenha não é inédita. A democracia brasileira já enfrentou ameaças semelhantes no passado: da quartelada de 1964 às tensões institucionais que marcaram o processo de redemocratização e os anos seguintes. Em todos esses momentos, a capacidade ou incapacidade das instituições de resistir à pressão definiu os rumos do país.

Hoje, novamente, o Brasil se vê diante da mesma encruzilhada — e, ao contrário de outrora, encontra um Supremo disposto a resistir firmemente, mesmo diante de ataques pessoais, ameaças digitais e sanções internacionais.

As mensagens privadas divulgadas pela Polícia Federal explicitam fissuras dentro da base bolsonarista, revelando disputas internas e desconfianças em torno da candidatura de Tarcísio de Freitas para 2026. A revelação de transferências financeiras suspeitas para Eduardo Bolsonaro no exterior e a aproximação com líderes estrangeiros de extrema-direita reforçam a percepção de que o bolsonarismo buscou apoio externo para enfraquecer o Poder Judiciário. Contudo, tais articulações não foram capazes de impedir o avanço do processo, que segue rigorosamente dentro dos marcos constitucionais.

DESTAQUE – No plano internacional, a postura firme do STF contrasta com experiências recentes de democracias mais antigas, como a americana. Não por acaso, a revista The Economist destacou que o Brasil oferece aos Estados Unidos uma lição de maturidade democrática.

Enquanto a política norte-americana ainda luta para responsabilizar Donald Trump pelos eventos de 6 de janeiro de 2021, com a invasão do Capitólio, o Brasil demonstra que não há líderes acima da lei. Essa distinção projeta o país no cenário global como exemplo de que democracias jovens também podem ser resilientes, mesmo sob enorme pressão.

O julgamento de Bolsonaro é, portanto, mais do que um processo jurídico: é um divisor de águas. A escolha que o Brasil tem diante de si neste momento — entre justiça e impunidade, entre democracia e autoritarismo — terá efeitos de longo prazo sobre a política nacional e a confiança das futuras gerações em suas instituições.

GUARDIÃO – O Supremo, alvo de críticas e ataques, emerge como guardião último da ordem constitucional, reafirmando que a soberania nacional não pode ser negociada nem refém de pressões externas.

A maturidade de uma democracia se mede, sobretudo, pela capacidade de enfrentar seus fantasmas sem ceder ao medo ou ao populismo. Se o Brasil souber atravessar este julgamento com firmeza, transparência e respeito ao devido processo legal, não apenas reafirmará seu compromisso com o Estado de Direito, mas também enviará ao mundo uma mensagem poderosa: aqui, a democracia não se dobra.

 

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A retórica inflamada de Eduardo tem erros técnicos grosseiros

Marcelo Copelli
Revista Fórum

O deputado federal licenciado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), numa estratégica tentativa de ocupar as manchetes dos noticiários e mobilizar as bases bolsonaristas, prometeu, em solo norte-americano e em tom de espetacularização, que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, seria alvo de sanções dos Estados Unidos, a serem aplicadas pelo governo Trump, entre o fim de maio e o início de junho. O prazo, como era previsível, não foi cumprido.

Eduardo justificou o afastamento de seu mandato por meio de um discurso ornamentado por questionáveis vestes diplomáticas, engajando-se em uma campanha junto a parlamentares republicanos e membros da extrema-direita americana para convencer o governo dos EUA a enquadrar Moraes na Lei Global Magnitsky — legislação que permite sanções unilaterais contra indivíduos acusados de corrupção ou violações graves de direitos humanos.

DESINFORMAÇÃO – Em tom de bravata, Eduardo Bolsonaro — que, quando mais jovem, fez intercâmbio “fritando hambúrguer no frio do Maine” — afirmou que Moraes “não poderia nem usar um cartão de crédito”, dramatizando o suposto alcance das sanções. O problema, contudo, é que essas declarações, além de juridicamente frágeis, beiram o terreno da desinformação deliberada — conhecido cenário em que trilha a única e desgastada linha de ação política que norteia e municia o seu clã familiar.

A Lei Magnitsky, sancionada nos Estados Unidos em 2016, foi criada para punir indivíduos responsáveis por violações sistemáticas de direitos humanos e atos de corrupção significativa. Sua aplicação, até hoje, esteve associada a regimes autoritários — como os da Rússia, Venezuela, China e Mianmar —, contextos em que perseguições, torturas, execuções extrajudiciais e censura institucionalizada são comprovadamente praticados.

A tentativa de aplicar essa legislação contra um ministro da Suprema Corte brasileira, com base em decisões judiciais amparadas pelo próprio sistema legal do país, representa um desvio gritante da finalidade da lei. No discurso de setores extremistas, porém, essa distorção é intencional, servindo para alimentar uma narrativa de perseguição e produzir falsas expectativas.

DETURPAÇÃO – Ao tratar Alexandre de Moraes como um “violador de direitos humanos” digno de sanção internacional, Eduardo Bolsonaro deturpa conceitos jurídicos e omite que o ministro tem atuado no combate a milícias digitais, à disseminação de desinformação e à tentativa de subversão institucional promovida por aliados do bolsonarismo.

As decisões de Moraes podem — e devem — ser analisadas no campo jurídico, dentro dos limites democráticos. O debate sobre a atuação do STF é legítimo. Porém, reduzi-las a violações de direitos humanos num cenário autoritário é uma falácia sem qualquer respaldo técnico.

Em entrevista ao Financial Times, Eduardo chegou a afirmar que havia “85% de chance” de as sanções se concretizarem — uma estimativa tão arbitrária quanto infundada, usada para animar seus correligionários com a sensação pueril de uma vitória no campo internacional.

USO POLÍTICO – A retórica inflamada vem acompanhada de erros técnicos grosseiros, e o uso político da Lei Magnitsky por Eduardo Bolsonaro revela, mais uma vez, uma tentativa de instrumentalizar a diplomacia americana para atacar instituições brasileiras. A ironia é que o mesmo grupo que costuma defender a soberania nacional e a não interferência estrangeira agora clama por intervenção externa para resolver disputas internas de poder.

O gesto não é apenas contraditório, mas perigosamente corrosivo. Ao internacionalizar um conflito institucional brasileiro, Eduardo Bolsonaro tenta legitimar a retórica antidemocrática que vem sendo usada desde a derrota eleitoral de 2022. A aposta é clara: gerar constrangimento ao STF, enfraquecer a imagem institucional do Brasil e manter acesa a chama do bolsonarismo internacionalizado, sobretudo junto à ala trumpista nos Estados Unidos.

No fundo, trata-se de mais um capítulo da já conhecida política do espetáculo: manchetes ruidosas, promessas fantasiosas e nenhum resultado concreto. Enquanto isso, a desinformação continua sendo alimentada, viciando o debate público e criando tensões artificiais entre poderes, entre nações e entre brasileiros. A democracia, por sua vez, segue sendo testada — e, por enquanto, resistindo.

Faixa de Gaza sitiada numa guerra que mata pela fome e pela sede

O que ocorre hoje em Gaza é uma guerra contra a sobrevivência

Marcelo Copelli
Revista Fórum

Desde o início deste mês, a crise humanitária na Faixa de Gaza atingiu um novo e alarmante patamar diante da intensificação dos bloqueios feitos pelas forças israelenses à entrada de água potável, alimentos, medicamentos e combustíveis no território. O cenário, que já era de extrema precariedade, torna-se ainda mais dramático.

Embora Israel tente justificar tais ações como medidas de segurança para evitar o desvio de recursos ao Hamas, é inquestionável o impacto direto e desproporcional sobre a população civil, provocando uma onda de indignação internacional. Organizações como a ONU, UNICEF, Human Rights Watch e Médicos Sem Fronteiras já classificaram a situação como um possível crime de guerra, denunciando que a negação deliberada de bens essenciais à sobrevivência viola as Convenções de Genebra.

COLAPSO – A situação no terreno é marcada pelo desespero que atinge milhares de famílias. Metade dos hospitais de Gaza opera com capacidade mínima, sendo que muitos deles já estão à beira do colapso devido à falta de energia e de insumos. Os geradores movidos a combustível não conseguem mais manter as unidades de terapia intensiva funcionando plenamente. Além disso, o sistema de abastecimento de água foi amplamente destruído ou comprometido e, em muitos bairros, palestinos sobrevivem com menos de meio litro de água por dia.

Entre os mais afetados estão crianças e bebês, uma vez que os hospitais não dispõem mais de leite especializado para recém-nascidos, forçando famílias a improvisar com misturas caseiras de água e farinha ou com açúcar, o que tem levado a graves quadros de desnutrição e infecções.

São inúmeros os relatos de mortes em filas de distribuição de comida. Segundo o Ministério da Saúde de Gaza, pelo menos 397 pessoas — em sua maioria civis — foram mortas enquanto esperavam por ajuda humanitária nos últimos dias, como no caso de um adolescente palestino de apenas 16 anos, morto por disparos israelenses enquanto tentava receber alimentos em uma área cercada. Como descreveu seu tio, “uma armadilha montada para matar gente faminta”.

INSEGURANÇA ALIMENTAR – A ONU estima que mais da metade da população de Gaza enfrenta insegurança alimentar em nível catastrófico. Não há garantias de acesso a qualquer tipo de alimento a curto prazo. A UNICEF alertou, em nota recente, que está “literalmente assistindo crianças morrerem de sede”.

Embora o tom da reação internacional seja crescente, o que se observa é a manutenção da hesitação diante da necessidade de ações concretas e urgentes. Parlamentares britânicos e europeus pressionam seus governos a suspenderem o envio de armas e recursos militares a Israel, enquanto não houver garantias mínimas de acesso à ajuda humanitária.

É necessária a criação de corredores humanitários desmilitarizados sob supervisão da ONU e de organizações humanitárias neutras, diante da intolerável situação cuja mancha na consciência da humanidade se alastra de forma incontrolável e cruel, atingindo civis inocentes.

IMPASSE – Israel, por sua vez, continua vinculando a liberação de ajuda à devolução dos reféns mantidos pelo Hamas, mantendo o impasse diplomático e humanitário. Essa postura enfraquece sua imagem internacional e aprofunda o isolamento político, mesmo entre aliados históricos. O uso de necessidades básicas como instrumento de pressão política viola não apenas o direito internacional, mas também os princípios mais fundamentais da dignidade humana.

O que ocorre hoje em Gaza é uma guerra contra a sobrevivência. A estratégia do cerco — que impede água, comida e cuidados médicos — desumaniza o conflito e transforma civis em alvos indiretos, com o agravante de que muitos dos mortos são crianças, mulheres e idosos.

IMPOTÊNCIA – Trata-se de uma punição coletiva que remete a práticas medievais, mas que ocorre no coração do século XXI, sob os olhos atentos — porém impotentes — da comunidade internacional. A neutralidade humanitária precisa ser restaurada como valor inegociável. O tempo está se esgotando, e cada hora sem ação significa mais vidas perdidas.

A crise de Gaza desafia não apenas o direito internacional, mas também a nossa capacidade coletiva de compaixão, empatia e ação. O futuro da região — e a credibilidade das democracias que afirmam defender os direitos humanos — dependerá do que o mundo fizer, ou deixar de fazer, nas próximas semanas.

A democracia sob escuta: os riscos revelados pela Abin paralela