João Pereira Coutinho
Folha
Viajo para o Rio de Janeiro neste mês. Alguns amigos portugueses, preocupados com meu bem-estar, perguntaram se eu já tinha tomado a vacina contra a dengue. Que desastre! Nunca tinha pensado no assunto. Mas bastou escutar a palavra “dengue” para que o sono daquela noite fugisse para parte incerta.
Contemplando o teto do quarto, suando na cama, escutando zumbidos de mosquito na minha imaginação, já tinha todos os sintomas da doença, exceto a doença.
NAS MÃOS DA CIÊNCIA – No dia seguinte, como um morto-vivo que saiu da sepultura para enfrentar a ofuscante luz do dia, marchei para a “consulta do viajante” e entreguei-me nas mãos da ciência. A ciência não queria o meu corpo. Uma médica, levemente divertida, tentou serenar-me. “Já não é verão no Brasil, as temperaturas estão mais baixas”, disse ela. “Basta um bom repelente”, acrescentou.
Agradeci, educadamente, e depois me lancei a seus pés, implorando. No fim da consulta, já tinha tomado a vacina contra a dengue (no braço direito), contra a febre amarela (no esquerdo), contra as hepatites A e B (novamente no direito). Não tinha era braços, mas essa é outra história.
Também trouxe um repelente. Minto. Dois: um para o corpo, outro para a roupa. Quando exigi um equipamento de apicultor, fui expulso do consultório.
PROCURANDO DOENÇA – São assim os hipocondríacos. Felizes na ignorância. Infelizes na sabedoria. Razão pela qual preferem a ignorância: aquele clichê do hipocondríaco procurando na internet informações sobre a sua saúde é coisa de amador, não de profissional.
Um profissional sabe que, usando o Google para saber algo mais sobre sua “dor de cabeça”, o mais provável é terminar a leitura em pânico, redigir o testamento e rumar para o bloco operatório mais próximo, em busca de um trépano.
Essa é a razão pela qual não tenciono instalar lá em casa o banheiro do futuro. Você conhece? Li no Wall Street Journal a respeito. Afastem de mim esse cálice. No espaço de uma década, será possível acordar, entrar no banheiro e sair de lá com uma lista generosa de todas as doenças que habitam nosso corpo.
EXAME COMPLETO – Por enquanto, só alguns hotéis, hospitais e até apartamentos de luxo na China oferecem algo comparável. O vaso sanitário, por exemplo, será de uma sofisticação que transformará a Nasa numa caverna rupestre. Segundo o jornal, será possível avaliar, só pelos dejetos, se o cidadão está hidratado, se tem pedra no rim, se tem doença grave nas entranhas.
A ducha, para além da limpeza habitual, servirá para identificar e tratar, por luz infravermelha, qualquer sinal de inflamação. Mesmo o espelho, na sua inocência aparente, será de uma vigilância dermatológica assombrosa, fazendo um rastreio enquanto você contempla seu rosto.
Depois, escovando os dentes, a saliva permitirá o diagnóstico completo, fornecendo todos os vírus e bactérias que merecem extermínio.
CONTA DO ESTRAGO – No fim da experiência, uma pessoa normal recebe a conta do estrago: “Infecção urinária e sarna. Tenha um bom dia”. Valerá a pena?
Não vale, irmãos. Um mundo de hipocondríacos será penoso de ver: o que se ganha em detecção precoce perde-se em paz de espírito. Palavra de profissional.
Até porque uma pessoa saudável, como dizem os cínicos, é alguém que ainda não foi devidamente estudada. O que hoje são imperfeições toleráveis, e ignoradas, passarão a ocupar um tempo e um espaço dramáticos.
Mas as consequências nefastas não serão apenas pessoais. Serão interpessoais. As relações amorosas, por exemplo, dificilmente sobrevivem a um patrulhamento tão íntimo. Basta pensar num primeiro encontro:
DIÁLOGO AMOROSO – Antes de sairmos para jantar, você pode usar o meu banheiro?
– Obrigado, mas não estou precisando.
– Por favor, eu insisto.
Se as expectativas amorosas já são tão elevadas na vida moderna, elas serão delirantes quando for possível fazer a história clínica de um potencial parceiro. E que dizer nesses momentos? “Gosto de você, mas não da sua próstata”?
Posso ser antiquado. Mas quero o meu banheiro como lugar de silêncio, leitura e reflexão. E, em jeito de hai-kai, pergunto: Como apreciar um poema ou um aforismo / quando as máquinas só querem saber / do meu reumatismo?