Charge do Miguel Paiva (Jornal do Brasil)
Fabiano Lana
Estadão
Imagine se o filósofo Friederich Nietzsche, ateu, tivesse razão ao intuir que o ser humano é mobilizado para ter poder, cada vez mais poder. Ou então, que o versículo presente no início do Eclesiastes, da Bíblia, “Vaidade de vaidades, diz o pregador, vaidade de vaidades! Tudo é vaidade”, tenha sido acurado ao definir que esse sentimento é o que move profundamente cada ser. Logo, aceitando-se essa premissa, laica ou religiosa, poder ou vaidade seriam as forças motrizes do que constitui as pessoas nas suas relações com os demais.
Além disso, imagine que exista alguém em posição de determinar, ao final, quem tenha razão numa disputa qualquer de relevância para a sociedade – ou seja, que exerce este arbítrio de fato. Como não ser tomado pelas demandas intrínsecas do poder ou da vaidade?
SUPERPODERES – Este papel de juízo final pertence a um integrante do Supremo Tribunal Federal brasileiro. Por decisões colegiadas ou pelos ainda mais controversos vereditos monocráticos, são essas autoridades que têm o encargo de decidir quem está correto nos temas que dividem nossa comunidade tantas vezes polar.
Quem ler o livro de Felipe Recondo e Luiz Weber, “O Tribunal – Como o Supremo se uniu ante a ameaça autoritária”, sobre a relação do STF e o governo Bolsonaro, vai perceber que os juízes togados não se limitaram a fazer o papel de intérpretes objetivos da Constituição.
Muito além disso, atuaram no limite tênue entre interpretar a lei e agir como um poder moderador. Influíram inclusive na administração pública, delimitando os espaços dos poderes Executivos (como no caso de determinar responsabilidades no combate à pandemia), também atribuindo-lhes funções.
INIMIGO EM COMUM – Na era Bolsonaro, a cúpula do Judiciário brasileiro ainda se encontrou com a principal circunstância que faz os desiguais se unirem: um inimigo em comum. Se de fato Bolsonaro, hoje inelegível, pretendia liderar um golpe de Estado, encontrou o STF como uma barreira.
Nesta missão que se concederam, os togados agiram como políticos estrategistas com uma causa a encabeçar. Nesse sentido, é preciso ser bastante ingênuo para acreditar que as nomeações de Lula e Bolsonaro para a mais alta corte se basearam em critérios como “notório saber jurídico” – esse predicado não é mais suficiente, nem mesmo necessário para que alguém conquiste uma cadeira no Supremo, no máximo um lustre.
O que vale é a fidelidade e a capacidade política, o que não é um demérito porque é impossível ocupar um papel como esse sem se valer da política diariamente.
INSTABILIDADE GERAL – As idas e vindas do Judiciário brasileiro, entretanto, colaboram para a instabilidade existencial das pessoas em relação a quem tem a última palavra no País. Um exemplo é se a prisão valeria após a segunda instância ou depois do trânsito em julgado, tema que ficou marcado pelo “vaivém jurisprudencial”, conforme a obra de Weber e Recondo.
Com a última decisão pela segunda hipótese, em 2019, o STF pavimentou a vitória de Luiz Inácio Lula como presidente do Brasil. Antes disso, o STF corroborou as decisões condenatórias contra Lula, por corrupção, em instâncias inferiores, mantendo-o na prisão.
Poucos anos antes, uma decisão de Gilmar Mendes impediu que Lula se tornasse ministro de um governo Dilma em apuros, com base em uma gravação de Sergio Moro, tida como ilegal. O mesmo Moro, nos atos seguintes, foi minado por uma série de decisões de ministros do Supremo anulando delações da Operação Lava-Jato.
DESCONFIANÇA – Também ocorreram as disputas televisivas entre ministros, os pedidos de vistas eternos, e até uma inesperada presença do atual presidente do tribunal, Luís Roberto Barroso, a receber uma vaia em palanque da União Nacional dos Estudantes, episódios que têm deixado perplexos até quem sempre busca ver a Corte com os olhos da boa-fé.
Como não interpretar todos esses movimentos sinuosos com alguma desconfiança? Bolsonaro também se aproveitou dessas incongruências para atacar o poder Judiciário, buscando enfraquecê-lo e desmoralizá-lo.
Não existem julgadores sem pecados, imunes ao poder, alheios à vaidade. Se apenas os puros pudessem julgar, todo crime prosperaria sem punição pelo simples fato de que as cadeiras da magistratura ficariam vazias. Mas não seria de todo mal os juízes terem alguma autoconsciência de que suas agendas pessoais e abusos injustificados podem contaminar um poder que, em tese, deveria contar com o suporte das leis e a confiança dos brasileiros – algo cada vez mais labiríntico nos dias atuais.
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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – Excelente artigo, enviado por Maria das Graças Martins. Como era muito longo para blog, reduzi um pouco o texto, que é da melhor qualidade. (C.N.)