Paulo Peres
Poemas & Canções
A ficcionista, dramaturga, cronista e poeta paulista (1930-2004) Hilda Hist é considerada pela crítica especializada como uma das maiores escritoras em língua portuguesa do século XX. No poema “Testamento Lírico”, Hilda diz que sempre se perdeu, porque desde criança era confundida e, nesse sentido, responde aos que desejam saber o quanto ela pediu durante sua vida.
TESTAMENTO LÍRICO
Hilda Hilst
Se quiserem saber se pedi muito
Ou se nada pedi, nesta minha vida,
Saiba, senhor, que sempre me perdi
Na criança que fui, tão confundida.
À noite ouvia vozes e regressos.
A noite me falava sempre sempre
Do possível de fábulas. De fadas.
O mundo na varanda. Céu aberto.
Castanheiras douradas. Meu espanto
Diante das muitas falas, das risadas.
Eu era uma criança delirante.
Nem soube defender-me das palavras.
Nem soube dizer das aflições, da mágoa
De não saber dizer coisas amantes.
O que vivia em mim, sempre calava.
E não sou mais que a infância. Nem pretendo
Ser outra, comedida. Ah, se soubésseis!
Ter escolhido um mundo, este em que vivo,
Ter rituais e gestos e lembranças.
Viver secretamente. Em sigilo
Permanecer aquela, esquiva e dócil.
Querer deixar um testamento lírico
E escutar (apesar) entre as paredes
Um ruído inquietante de sorrisos
Uma boca de plumas, murmurante.
Nem sempre há de falar-vos um poeta.
E ainda que minha voz não seja ouvida
Um dentre vós, resguardará (por certo)
A criança que foi. Tão confundida.
Antes amar, sonhar, até sofrer
Do que ao fim da vida chegar
Olhar para o passado e não ter
Um só amor para lembrar
Lembrar de beijos molhados
De momentos encantados
Da sede de um quê, que nos completa
Nos inspira e dá sentido ao nosso ser
Antes o amor com toda sofrência
Ao triste vazio da sua ausência