No seio do catolicismo, Igreja temia experiências diretas de fiéis com Deus

A ilustração de Ricardo Cammarota foi executada em técnica digital, linguagem vetor. Mostra três figuras alongadas e estilizadas em silhueta roxa, sobre fundo branco. As formas se sobrepõem e lembram seres híbridos entre humanos e animais. À esquerda, uma figura tem cabeça felina e braços estendidos. No centro, uma silhueta antropomórfica aparece em posição inclinada. À direita, outra figura de corpo humanoide apresenta cabeça de antílope com chifres, segurando um bastão longo e fino. Todas as figuras estão entrelaçadas por linhas diagonais que cruzam a composição.

Ilustração de Ricardo Cammarota (Folha)

Luiz Felipe Pondé
Folha

O medo da religião hoje está ligado ao medo do mal que a religião pode fazer para a vida psicológica emancipada moderna, assim como o medo do que grupos religiosos podem fazer à democracia. Exemplo claro da primeira situação é a suspeita em relação à submissão de pessoas religiosas aos “funcionários de Deus” —como o teólogo alemão Eugen Drewermann chama o clero.

Exemplo da segunda situação é o medo manifesto por vários setores da sociedade brasileira de que o país se torne refém do crescimento dos evangélicos de cepa conservadora.

 

NO LADO DE DENTRO – O medo da religião nem sempre teve origem na população exterior às comunidades religiosas. Muitas vezes, e de forma dramática, esse medo veio de dentro dessas mesmas comunidades.

No seio do catolicismo, teve uma face específica que foi o medo da corrente mística dentro da história da espiritualidade católica. A liderança oficial da igreja sempre temeu e acompanhou de perto as pessoas e suas narrativas de experiencias diretas com Deus, denominadas como experiências místicas.

Tanto o medo contemporâneo no Brasil do risco da “irracionalidade evangélica” contaminar a nossa vida social, política, moral e psicológica —nem percamos tempo tentando negar a afirmação acima do medo da irracionalidade evangélica, porque qualquer negação desse tipo seria mentira— quanto o medo da mística dentro da história do catolicismo desde, grosso modo, os séculos 13 e 14, agravando-se ao longo do século 17, ambos são marcados pela identificação do componente de irracionalidade —e da irresponsabilidade moral decorrente— como sendo o núcleo do risco em questão.

MEDO DA MÍSTICA – No caso do medo da mística —meu interesse e objeto de estudo há anos—, devemos olhar para a luta da Igreja Católica para ter controle sobre o que seria ou não uma legítima espiritualidade tocada pelo “conhecimento direto de Deus”.

Essa tentativa de controle da espiritualidade ou da ritualística é denominado pelo historiador francês André Vauchez como a busca pela colonização do sobrenatural europeu por parte do cristianismo católico.

Ela acontece num primeiro momento sobre as formas religiosas pré-cristãs na Europa e, na sequência, sobre as distintas formas de espiritualidades cristãs no mesmo continente.

SANTA INQUISIÇÃO – O leitor que conhece algo do assunto pensará logo na Santa Inquisição, e não estará errado em fazê-lo. Apesar de ela sempre ter sido uma espécie de ministério público da Igreja a aceitar denúncias, processar, investigar e condenar —aqui mais como supremo tribunal da ortodoxia da fé— suspeitos de heresia ou ilegitimidade espiritual, a discussão deste texto não quer chegar a essas minúcias “jurídicas”.

Meu interesse recai sobre o que o grande historiador da mística cristã Bernard McGinnn chama de “A Crise da Mística” no seu livro, cujo título é este em inglês, relançado em 2021.

Essa crise da mística se refere, especificamente, à disputa acerca do quietismo no século 17, que assolou a França, a Itália e a Espanha.

PASSIVIDADE – Quietistas foram, entre muitos outros, o espanhol Miguel de Molinos, condenado pela inquisição e que morreu na prisão depois de nove anos de cárcere na Itália, e os franceses, o arcebispo Fénelon —condenado ao ostracismo—, e Madame Guyon —presa por mais de oito anos. Todos eles tiveram as suas vidas arruinadas.

O quietismo teve esse nome porque afirmava a experiência mística como de absoluta passividade e quietude diante de Deus, num aniquilamento absoluto da alma, conceito que data de autoras como a francesa Marguerite Porete —queimada em Paris em 1310. Quietismo implica um radical silêncio interior, que seria a antessala da experiência mística.

ACIMA DAS LEIS – Os quietistas serão acusados por agentes da hierarquia católica de defensores do antinomianismo. O que é isso? Trata-se de uma acusação muito grave que significa que os místicos estariam acima das leis religiosas ou seculares porque unidos a Deus.

O praticante da oração interior que o aniquila e o leva à liberdade absoluta, sem necessidades de contenção exterior constituída pela instituição ao longo dos séculos, está livre de cometer pecados, livre da necessidade de mortificações ou mesmo da busca de direção espiritual por parte dos membros do clero. Imagine só uma mulher mística assim.

IRRACIONALIDADE – No século 17 do grande racionalismo e posterior iluminismo, a mística quietista —outro termo comum é “a invasão mística”— será vista como um surto de irracionalidade no seio do catolicismo.

A crise da mística à qual se refere McGinn é o descrédito e posterior empobrecimento que se abateram sobre a mística na Igreja Católica desde então.

7 thoughts on “No seio do catolicismo, Igreja temia experiências diretas de fiéis com Deus

  1. Centrão fecha acordo sigiloso com ala do STF por domiciliar para Bolsonaro, redução de penas e rejeição de anistia

    • Proposta ainda dependeria de recuo do PL a um perdão amplo para os condenados por trama golpista

    • Negociação prevê que ex-presidente cumpriria prisão em casa por motivos de saúde

    Fonte: Folha de S. Paulo, Política, 17.set.2025 às 21h00 Por Raphael Di Cunto e Victoria Azevedo

    ACORDO SIGILOSO? COMO ASSIM?

  2. A mísitica domina onde domina o pensamento idealista-positivista, incusive nas fábricas de produção fordistas de gênios imbecilizados, a Acadmia, tornado aparelho ideológico da Velha República Tardia im-lantada pela Organização Petista reacionária e atrasada.Esta, aliás, é “o” exemplo de organização “marxista” tomda pela metafísica idealista, onde o santo adorado e idolatrado é o pândego, Lula, a maior aberração ideológica da História.

    Não me consta que o misticismo seja desafeto da religiãoo, se não sua base concreta e fundamental. Aí não há espaço para o racionalismo, a lógica formal. embra devemos considerar que até a fé é passível do devir histórico.

    O probçema maior, proposto pelo bolsonarismo é a superveniência da irracionalidade da fé como Razão do Estado. e neste ponto sou radicalmente oposto a ele, tanto quanto à mistica lulopetista. O que não significa que eu defenda que seja defenetrado pelo lawfare dos processos nascidos nulos.

    O que assistimos na máquina jurídica da Organização Petista, representada pelo STF, é a mística positivo-idealista como Razão Jurídica do Estado, a totalitária Teoria Penal do Inimigo cuja maior exprressão são aqueles processos nulos de nascença.

    Não creio que a Religião enquanto tal seja algum problema, o problema é seu uso como se fora a racionalidade política. Aí é o caminho pra inquisções.

    • A perspcetiva metodológica da antropologia cultural, que busca sacar a realidade sob a visão do objeto de estudo, parece-me mais adequada pra análise destes casos cabulosos, tal como a relação fé/racionalidade/política/devir histórico.

      Os preconceitos racionalistas são embotadores de uma visão concreta da realidade da fé.

      • Há maior misticismo que creditar à aberraçao ideológicaa, Lula, a “defesa da Democracia”, quando está ao lado, na real, de ditaduras e grupos terroristas medievais, totalitários, misóginos e homofóbicos?

  3. Senhores Luiz Felipe Pondé (Folha) e Carlos Newton traduzam-nos o que de fato e realmente significa o vocábulo ” conservadorismo ” , uma vez que meio mundo fazem seu uso em inúmeros contextos da vida pública , pois acredito o fazem na base da má-fé , tais como ” Deus , Família e Pátria ” sendo que seus arautos em geral estão atolados até o pescoço em ” falcatruas , corrupção e em inúmeros crimes , etc…

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