Moares, que se afasta hoje do TSE, sai sem deixar saudades
Angela Pinho
Folha
Uma nova interpretação dada pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) a um artigo da Lei Geral das Eleições sobre anonimato nas campanhas tem sido usada para uma série de multas a políticos e, em alguns casos, até eleitores e outras figuras públicas, por conteúdo considerado como desinformação, ainda que tenha autoria clara.
A mudança de entendimento da corte é questionada por advogados da área por ir contra o texto literal da legislação. Por outro lado, parte deles pondera que a medida é uma tentativa do tribunal de não se omitir em relação ao tema em um cenário em que projetos para regulamentar as plataformas digitais emperraram no Congresso.
ANONIMATO – O artigo 57-D da Lei Geral das Eleições diz que “é livre a manifestação do pensamento, vedado o anonimato durante a campanha eleitoral, por meio da rede mundial de computadores —internet, assegurado o direito de resposta”.
A sanção prevista em caso de violação ao dispositivo é de multa de R$ 5.000 a R$ 30 mil. E a “reinterpretação” do dispositivo, conforme palavra usada por Moraes, teve origem em ação movida contra o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) em decorrência de um vídeo publicado em outubro de 2022 pelo bolsonarista.
Na filmagem, o então deputado eleito dizia que Lula havia desviado R$ 242,2 bilhões da saúde pública e reproduzia trecho de declaração em que o petista afirmava o seguinte: “As pessoas que são analfabetas não são analfabetas por sua responsabilidade. Elas ficaram analfabetas porque esse país nunca teve um governo que se preocupasse com a educação”.
FOI MULTADO – Em decisão monocrática ainda em dezembro de 2022, Moraes decidiu impor a Nikolas a multa de R$ 30 mil, pelo que entendeu serem declarações inverídicas e gravemente descontextualizadas no vídeo.
O ministro afirmou que os R$ 242,2 bilhões citados foram direcionados a outras rubricas do Orçamento, e não desviados por corrupção, como deu a entender o deputado; e que, na versão original da frase sobre analfabetismo, Lula citava uma série de medidas de seus governos para combater o problema.
Ao defender a reinterpretação do artigo 57-D, Moraes citou na ocasião “o grave contexto de propagação reiterada de desinformação, com inegável impacto na legitimidade das eleições” e a missão do TSE “no combate às fake news na propaganda eleitoral”.
REINTERPRETAÇÃO – Para contestar a leitura literal do artigo, ele argumentou que, “realmente, a partir da leitura do dispositivo, não se mostra viável depreender que o ilícito se restringe à hipótese de anonimato”.
Ao analisar recurso de Nikolas em março de 2023, o TSE confirmou o entendimento de Moraes por 6 votos a 1. Ficou vencido o ministro Raul Araújo, que entendeu estar o vídeo dentro dos limites da liberdade de expressão e não ser cabível aplicar o artigo contra anonimato a casos de desinformação.
Desde então, o artigo tem sido aplicado em uma série de decisões na corte —só em abril, foram ao menos seis— e também nos tribunais regionais eleitorais.
BOLSONARISTAS – A pesquisa de jurisprudência do TSE mostra que bolsonaristas estão entre os mais multados com base no entendimento no artigo.
O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), por exemplo, tem multas acumuladas em R$ 100 mil por afirmações que tratam de associações do PT ao PCC, a imputação ao partido de alegações falsas sobre sexualização de crianças e o chamado a aposentados a fazerem “prova de vida direto nas urnas” votando em Bolsonaro.
Seus filhos Flávio e Eduardo, assim como a correligionária Carla Zambelli, também estão entre os que receberam mais de uma multa.
DAMARES ALVES – Em caso recente, por outro lado, a sanção foi usada para punir com multa de R$ 5.000 um crítico da senadora Damares Alves (Republicanos-DF) em sua campanha ao cargo. Com 149 seguidores à época, o perfil @brasiliasemdamares reproduziu texto de um blog com os comentários “é um absurdo” e “brincando com o dinheiro do povo”.
O relator do caso no TRE-DF entendeu que o dono da conta deveria ser multado, uma vez que o conteúdo reproduzido por ele continha informações inverídicas, como a de que Damares havia gasto todo o dinheiro do fundo eleitoral para a sua campanha e feito uma vaquinha virtual.
O cantor Latino também foi multado em R$ 5.000, pelo TSE, por publicar vídeo que dizia que Lula e o PT eram favoráveis à implantação de banheiro unissex nas escolas, ao aborto e à liberação das drogas.
A FAVOR – Autor de “Liberdade de Expressão e Desinformação em Contextos Eleitorais” (ed. Fórum), Elder Maia Goltzman afirma que a reinterpretação do artigo sobre anonimato pode ter um efeito de dissuadir agentes a praticarem desinformação, em um contexto no qual o Congresso não regulamentou as plataformas digitais.
Ele afirma ainda que a mudança de entendimento não é incomum no tribunal, dada a sua composição rotativa.
A advogada Amanda Cunha, membro da Abradep (Associação Brasileira de Direito Eleitoral e Político), avalia como problemático o uso do artigo 57-D para coibir desinformação quando não há anonimato. Segundo ela, a corte nesse caso não promoveu uma mudança de interpretação, mas “a criação de um ilícito que não está na legislação”, resultando em arbítrio.
###
NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – Essas reinterpretações de lei não são apenas arbitrárias, porque chegam a ser ridículas. O TSE devia respeitar as leis e usar os Códigos Civil e Penal como subsidiários em seus julgamentos, à moda antiga, que sempre funcionou muito bem. Mas a vaidade não permite, creio eu. (C.N.)