Eduardo Affonso
O Globo
É fácil imaginar o ridículo em que incorreria uma ministra da Saúde que declarasse: “Falar em vírus de computador contribui para o descrédito das campanhas de vacinação”. Pessoas que têm letramento sanitário não dizem coisas como “o carro morreu”, e a gente escuta muito isso.
Ou um ministro dos Direitos Humanos, em campanha contra o etarismo, criticar expressões do tipo lua nova, bossa nova, Novalgina, Jovem Pan, Jovem Guarda — por enfatizarem o “novo”, perpetuando a discriminação aos idosos. “Pessoas que têm letramento etário não usam” — diria, valendo-se da velha (ops, surrada) carteirada da superioridade intelectual.
Está fora de cogitação um magistrado (digamos, do STF) condenar quem diga “pneu careca” ou “estou careca de saber”.
— Indivíduos utentes de letramento capilar não logram valer-se de elocuções desse jaez — aludiria, em seu ínsito vernáculo.
DIZ A MINISTRA – Não, ninguém que preze a inteligência alheia desenvolveria “raciocínios” tão descabidos. É óbvio que carro não entra em óbito; que a escola de samba se chamar Mocidade Independente de Padre Miguel não exclui a velha guarda; que o campo careca tem apenas grama rala, sem aludir à calvície de ninguém.
Mas a ministra da Igualdade Racial tachou de analfabeto quem não vê racismo em “buraco negro” e prefere entendê-lo como definido pela Física (região do espaço-tempo em que o campo gravitacional é tão intenso que nenhuma partícula ou radiação eletromagnética consegue escapar) — e se vale disso, metaforicamente, para uma situação que pareça um beco sem saída.
Culpa da ciência, claro, que não soube se antecipar aos delírios identitários do século XXI e deixou de chamar de flicts, talvez, à cor que absorve todos os comprimentos de onda.
CONOTAÇÃO RACIAL – Insistir que palavras como preto, negro, escuro — ou quaisquer de suas variações — tenham sempre conotação racial (e depreciativa) é puro suco de negacionismo etimológico ou de contexto.
Mas se encaixa à perfeição no discurso “nós” (afrodescendentes, mulheres, LGBTQIAP+, despossuídos, oprimidos, compassivos, conscientes e de esquerda) versus “eles” (eurocêntricos, tóxicos, convencionais, privilegiados, opressores, insensíveis, iletrados e de direita).
Êta mundinho binário!
LUZES E TREVAS – Para “desracializar” a linguagem, será preciso revogar a dicotomia entre luzes e trevas que nasceu com o universo, no bigue-bangue, e reparar a injustiça óptica de o branco ser a soma de todas as cores e o preto a ausência de luz. Até lá, não hão de cessar os ataques ao balé “O lago dos cisnes” (o cisne negro é a gêmea má), ao humor negro e, se bobear, até ao prêt-à-porter (associação sonora de “preto” a um tipo de roupa que não é de alta-costura…).
Dará trabalho (com o perdão da palavra) descolonizar o cérebro de quem contrabandeia, sem juízo crítico, certos conceitos acadêmicos — como racial literacy — e quer aplicá-los, na marra, a uma realidade tão diferente daquela para a qual foram pensados.
Lutar contra as palavras (luta mais vã…) em vez de olhar para o racismo real lembra a velha piada de procurar na sala (que está mais iluminada) algo que se perdeu no quintal. A pessoa nunca vai achar, mas se sentirá gratificada pelo fingido esforço de encontrar.