Demétrio Magnoli
O Globo
Antes do 24 de fevereiro de 2022, os estadistas ocidentais que foram a Moscou para dissuadir Putin de invadir a Ucrânia sentaram-se na ponta de uma mesa interminável, como suplicantes diante de um czar. Celso Amorim sentou-se na mesma posição humilhante em março de 2023, quando transmitiu a solidariedade de Lula a um ditador com ordem de prisão emitida pelo Tribunal Penal Internacional.
Tucker Carlson teve tratamento distinto. No Kremlin, há pouco, entrevistou Putin separado apenas por uma intimista mesinha de centro. Não era jornalismo, mas propaganda política.
EM DUAS PARTES – Carlson, ex-âncora da Fox News, notório arauto da direita nacionalista dos Estados Unidos, exercitou o esporte da desinformação inteligente. A entrevista, com mais de duas horas, deveria ser editada em duas partes. Uma delas destina-se ao Partido Republicano, ao Congresso dos Estados Unidos e à base social de Trump. Na outra, controlada por Putin, o líder russo fala a sua própria audiência — ao nacionalismo grão-russo.
O segmento dirigido ao público externo é ritmado por previsíveis perguntas de Carlson, que embutem as respostas desejadas. A “operação militar especial” russa é uma ação defensiva provocada pelo “Ocidente coletivo”. A expansão da Otan ameaçava a integridade e a segurança russas.
A revolução popular de 2014 que derrubou o governo russófilo da Ucrânia teria sido um golpe de Estado tramado pelos Estados Unidos. A Ucrânia foi “nazificada” para servir como aríete contra a Rússia.
EUA ISOLADOS – Há pouco, num comício, Trump declarou que renegaria o artigo 5º do Tratado da Otan, em que está inscrito o compromisso de defesa mútua entre os Estados Unidos e seus aliados. Prometeu, ainda, erguer um “domo de ferro” de mísseis antimísseis para proteger os Estados Unidos de ataques balísticos. Uma superpotência isolada num casulo militar, uma política internacional baseada em esferas de influência, o abandono da Ucrânia — eis a receita estratégica do candidato republicano. É em nome dela que Carlson sentou-se à mesa íntima de Putin.
Na passagem mais curiosa, Putin sugere que, desde o fim da Guerra Fria, as agências de inteligência dos Estados Unidos sabotaram as oportunidades de aproximação estratégica com a Rússia ensaiada pelos chefes dos dois Estados.
MORTE DE NAVALNY – A entrevista ocorreu dias antes da eliminação, na prisão, de Alexei Navalny. Sem corar, diante de um ditador célebre pelas sistemáticas mortes “misteriosas” de seus críticos, Carlson aprova alegremente a tese de que os Estados Unidos são governados por forças diabólicas ocultas.
Faz sentido: em sua campanha de retorno à Casa Branca, Trump exibe-se como o condottieri do povo em combate contra o “Estado profundo”.
A esquerda lulista gostará dessa parte da entrevista tanto quanto a extrema direita bolsonarista. Lá, encontram-se as alegações protocolares usadas no Brasil, pelas duas torcidas uniformizadas, para justificar a guerra imperial russa.
VERDADEIRAS RAZÕES – O segmento dirigido ao público russo abrange uma confissão espontânea das motivações verdadeiras da invasão. Durante os primeiros 25 minutos, Putin oferece a Carlson uma aula completa sobre a História russa, tal como narrada pelos cavaleiros da Grande Rússia.
A Ucrânia não é uma nação legítima, mas o berço da Rússia eterna. A separação da Ucrânia, nascida de erros imperdoáveis dos bolcheviques, é uma violação cultural e religiosa abominável. A guerra restaura uma verdade sagrada estabelecida no século IX.
Esse segundo palanque, em que Putin fala para os seus, é contraindicado para a esquerda lulista. Mas não fará mal nenhum à direita bolsonarista, que tende a acreditar em verdades eternas e nações naturais.
OUTRAS VERDADES – Na encenação propagandística, nem tudo é desinformação. Putin registra, agudamente, que as sanções à Rússia fracassaram e que o uso do dólar como arma de guerra tem efeitos negativos de longo prazo para os Estados Unidos.
Igualmente, constata que não é realista o objetivo de impor uma derrota militar estratégica à Rússia.
Mas, num ponto crucial, Putin sonha acordado. Ao contrário do que profetiza, a ferida aberta entre o povo russo e o ucraniano jamais cicatrizará. Seja qual for o desenlace da guerra, a Rússia perdeu a Ucrânia para sempre. Foi isso que ele fez.