Elio Gaspari
O Globo/Folha
Sente-se forte cheiro de queimado no acordo verbal fechado há duas semanas pelas operadoras de saúde com o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira. À primeira vista, foi um alívio. Depois de cancelarem os planos de dezenas de milhares de pessoas, inclusive de uma senhora de 102 anos, freguesa da Unimed desde 2009, com mensalidade de R$ 9.300, as empresas comprometeram-se a suspender o massacre.
À segunda vista, o negócio não é bem assim. Pelo menos 30 mil vítimas ficarão sem contrato, e a Pax Liresca durará enquanto tramitar, nas palavras do doutor Lira, “uma proposta legislativa que tenha a possibilidade de inovar”.
NO ESCURINHO – Tradução: o problema foi remetido ao escurinho de Brasília. Todas as malfeitorias das operadoras baseiam-se em leis ou normas produzidas naquele mundo de sombras. É só lembrar que, em 2020, as operadoras relutaram em cobrir o pagamento dos testes de laboratório para detecção da Covid-19.
Afinal, o rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde não falava de testes para uma doença que havia acabado de aparecer. A negociação com Lira teria impedido a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Depois da CPI da Americanas, impedi-las tornou-se um serviço público.
Rescisões unilaterais de planos de saúde cresceram nos últimos meses, mas não está claro ainda como funcionará, na prática, acordo costurado pelo presidente da Câmara dos Deputados – Pixabay
DO TIPO GIRAFA – O acordo de cavalheiros produzido por Lira é uma vaga girafa. Ficaram fora dele todos os órgãos do Executivo, a começar pela ANS.
O setor das operadoras de saúde está em crise. No conjunto, fechou o ano com prejuízo operacional de R$ 4,53 bilhões, mas isso quer dizer pouca coisa, porque muitas operadoras tiveram lucro.
Levando a questão para uma “proposta legislativa”, corre-se o risco de produzir uma situação em que ferram-se os fregueses e aliviam-se as operadoras mal geridas. Novamente, vale lembrar que, em 2014, um jabuti legislativo aliviava as operadoras no pagamento de multas por não atenderem a freguesia. Pela gracinha, quanto maior fosse o número de infrações, menor seria seu valor unitário. Dilma Rousseff vetou-a.
OPÇÃO PREFERENCIAL – O governo Lula 3 fez opção preferencial por temas genéricos, passando ao largo de crises específicas. Com as operadoras de saúde, ele não mexe, o que não é novidade, porque a turma da Lava-Jato também não mexeu.
A encrenca das operadoras é do tamanho de duas outras de tempos passados, a dos bancos, que explodiu no colo de Fernando Henrique Cardoso, e a das empreiteiras, que contribuiu para a deposição de Dilma Rousseff.
Não foi à toa que a gigante americana UnitedHealth fugiu do mercado brasileiro. Trata-se de um setor da economia que atende 51 milhões de brasileiros, em que prosperam alguns donos de operadoras e de hospitais. Negam atendimentos, descumprem até decisões judiciais e argumentam que cumprem as leis e as normas. O plano ficou caro? Culpa da inflação médica que foi de 14,1%, ante os 4,8% da vida oficial.
SEM CONTROLE – As dificuldades do setor vêm de uma origem simples: nele não há rigor no controle de custos. Na ponta dos planos e dos serviços, fatura-se. Na outra, 51 milhões de vítimas pagam. Quando a conta não fecha, cancela-se o freguês idoso ou doente. Havendo grita, arma-se uma acordo de cavalheiros à espera de uma “proposta legislativa”.
Tudo bem, mas o ator mexicano Cantinflas já cuidou desse tipo de acordo. Antes de começar uma partida de dominó, perguntou aos parceiros: — Senhores, vamos jogar como o que somos?