Eliane Cantanhêde
Estadão
No mesmo dia e no mesmo evento em que lançou o Programa “Acredita”, para financiamento de pequenas empresas, ativar o consumo e aquecer a economia, o presidente Lula cobra do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que converse mais com o Congresso, em vez de ficar lendo livros. Meio de brincadeirinha, meio para valer, a frase suscitou uma dúvida: e se o professor Haddad revidar?
Já imaginaram o principal ministro, da área mais crucial do governo, devolvendo na mesma moeda e fazendo uma “brincadeirinha” no sentido contrário? “Chefe, por que o sr. não lê mais livros, em vez de falar tanta bobagem na economia e na política externa?” Ou: “Por que o sr. não lê mais livros, artigos e reflexões de especialistas para se atualizar, não ficar no passado?”.
APESAR DE TUDO… – Ninguém confirma nem desmente, mas a fala de Lula aumenta a sensação de que sua relação já foi melhor com Haddad, seu dileto pupilo político, que ocupou seu lugar na cabeça de chapa de 2018 e tem sido de uma lealdade a toda prova, apesar de tudo…
Impossível não notar que Haddad anda com ar cansado, despenteado, parecendo ter perdido o vigor de 2023, quando foi a melhor surpresa e o grande troféu do governo.
No lançamento do “Acredita”, Lula também cobrou que seu vice Geraldo Alckmin, ministro do Desenvolvimento e Indústria, seja “mais ágil”, e que Rui Costa, da Casa Civil, e Wellington Dias, do Desenvolvimento Social, conversem mais com senadores e deputados, mas o recado foi amplamente percebido, ou registrado, como endereçado a Haddad. O que é uma injustiça.
LULA RATEOU – Ao prometer e aos poucos configurar um governo de coalizão aberto a praticamente todos os partidos e forças políticas, Lula rateou e não conseguiu atingir dois grupos fundamentais para o governo, o evangélico e o agronegócio, que têm, ambos, enorme alcance na sociedade, montanhas de votos, uma dinheirama incontável e… sólidas bases na Câmara e no Senado. Em vez de ganhar, Lula parece estar perdendo apoio nesses dois grupos, como mostram as pesquisas.
Logo, Haddad foi mais eficiente na sua, digamos, articulação política: enquanto lia um livro ou outro, até para distrair, ele se aproximou do mundo financeiro, do empresarial, de economistas de diferentes vertentes, de ministros do Supremo, do Banco Central e de jornalistas, além das cúpulas da Câmara e do Senado. Até com MST negociou.
Não cedeu além do necessário, mas, sim, falou muito, ouviu muito e ganhou o principal de todos esses setores, credibilidade. Bom para ele, melhor ainda para o governo, mas Lula parece menosprezar.
ENGOLINDO TUDO… – Houve embates sobre gastança, déficit zero, tributação de bugigangas importadas e, virava e mexia, lá estava o ministro da Fazenda tendo de engolir cobras, lagartos, críticas e provocações. De Rui Costa, internamente. De Gleisi Hoffman, publicamente. De Lula, nas duas frentes, interna e pública.
Deve dar um cansaço danado e Haddad vinha suportando galhardamente, a ponto de analistas deduzirem que era “jogo combinado”. Será?
Haddad entrou em 2024 mais recolhido, caladão e devagar. Errou a mão com a MP da reoneração da folha de pagamentos, perdeu o timing da regulamentação da reforma tributária e teve de jogar a toalha no superávit fiscal para 2025 e 2026. Ou seja, superávit só depois do governo Lula.
CRISE DE CONFIANÇA – Isso tudo, embolado com as ameaças e pautas bombas do Congresso e principalmente com as sinalizações de Lula na Petrobras, na Vale, na política externa e no ímpeto de gastar, esgarça a confiança no governo e afasta investidores.
Se tudo se ajeitar no final, o Brasil crescer, a inflação dos alimentos recuar, os juros mantiverem o ritmo de queda e as pesquisas reagirem positivamente, Lula será o grande e praticamente único vencedor.
Se não der certo, já temos um bode expiatório. Quem mandou ler demais?