Luiz Felipe Pondé
Folha
Uma das tradições mais ricas no cristianismo antigo é aquela conhecida como os padres do deserto. Homens e mulheres que se exilavam no deserto em regiões como o Egito, Israel, Síria, Turquia (Capadócia), a fim de buscar Deus. Aquilo que conhecemos como a prática monástica é descendente direta desses padres e mães do deserto.
Nesse processo de desconstrução interior, de entrar em contato com seus demônios na solidão e no silêncio, sob a fúria dos elementos naturais, como se falava então, como frio, calor, fome, sede, escuridão, essas testemunhas de Deus —”monachói”, raiz grega da palavra “monge”— fundarão a linhagem da busca enlouquecida de Deus atravessando suas defesas psicológicas e máscaras sociais.
NO SUBSOLO – Dostoiévski (1821-1881), segundo a fortuna crítica, se inspira nesse tipo de atravessamento de si mesmo, sem misericórdia, para escrever seu monumental “Memórias do Subsolo”, um dos maiores livros já escritos na Europa.
Logo na abertura, nosso homem do subsolo se refere a possível causa médica de ele ser um homem tão amargo: ele sofreria do fígado.
Mas, tomado pela busca desenfreada de não mentir sobre si mesmo, nosso homem do subsolo fala um pouco mais abaixo algo mais ou menos assim: o problema não é o meu fígado, eu sou mesmo um homem mau.
SOLIDÃO DO ETERNO – Até hoje existem homens e mulheres que buscam essa solidão acompanhada pelo Eterno, inclusive no Brasil —não vou citar exemplos de locais assim para não destruir a solidão, a paz e o silêncio dessas pessoas. Em nosso tempo, devemos cuidar para a multidão não destruir tudo.
Seria possível pensar num processo como esse fora da instituição religiosa? E, evidentemente, fora da nebulosa de picaretagem que assola o mundo da espiritualidade desde a segunda metade do século passado?
Essa ideia aparece, por exemplo, na gigantesca nebulosa de picaretagem citada acima, sob a rubrica falsamente facilitada da busca de autoconhecimento.
FORA DA RELIGIÃO – Mas, existem formas consistentes de se atravessar um processo assim fora do contexto propriamente religioso institucional. Vejamos um exemplo.
O grande psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) descobriu por si mesmo esse caminho fora de qualquer instituição religiosa.
Com essa referência, não quero passar a ideia de que seria “melhor” ou “pior” atravessar esse processo fora ou dentro de uma instituição religiosa porque não sofro de qualquer anticlericalismo démodé.
SURTO DE JUNG – Num sonho em 1927, relatado na sua autobiografia “Sonhos, Memórias e Reflexões”, atravessando um período de intenso sofrimento psíquico que muitos se referem como “seu surto”, Jung “descobriu” questões essenciais que serão tratadas ao longo da sua vida profissional e sustentarão a teoria que ficará conhecida como psicologia analítica.
Nesse período ele entrará em contato com o inconsciente coletivo e seus arquétipos —assim ele denominará este conceito— caracterizado por ser algo universal, ancestral e definitivo na história pessoal de cada um, assim como da espécie, como um todo.
Como diz o próprio na obra acima citada, foram necessários 45 anos para ele dar conta das experiências que ele viveu até então.
EM MEIO À POLUIÇÃO – No sonho de 1927 —resumidamente— ele se encontra em Liverpool, suja e escurecida pela fuligem, a conhecida poluição causada pela revolução industrial então ainda recente. Ele se encontra em meio a outras pessoas, cercadas pela sujeira, chuva e escuridão.
Mas, no centro de um lago à frente, numa ilhota —que ele dirá ser percebida só por ele— uma luz do sol resplandecia numa árvore. Em meio a agonia da vida e do mundo, uma esperança de que se possa viver com algum sentido —a luz— não destruído pela “escuridão”.
Para Jung, este sonho indicará seu destino, destino este que ele se referirá como “seu mito”.
SI MESMO – Mas, o conceito que nasce daí será o de “si mesmo”, ou “self” cuja trajetória na vida, quando minimamente bem realizada, será o encontro consigo mesmo e o entendimento que a vida só tem sentido quando banhada nessa “corrente de lava e a paixão nascida do seu fogo”, como ele mesmo descreve.
A metáfora da corrente de lava e a paixão que nasce do seu fogo não deve ser de modo nenhum menosprezada neste contexto porque ela indica, justamente, a agonia que um processo como esse implica. Agonia esta que poderá se materializar numa paixão por viver sendo fiel ao fogo que queima e aquece ao mesmo tempo, mas que é luz.
Nesse período, Jung desiste de sua promissora carreira de professor na faculdade de medicina de Zurique para se dedicar a sua obra. Sem agonia e sofrimento — a travessia do deserto — não há autoconhecimento.