Demétrio Magnoli
Folha
O Censo de 2022 constatou que a parcela de pardos (45,3%) ultrapassou a de brancos (43,5%) e, ainda, que a de pretos atingiu 10,2%. Daí, a militância identitária, que inclui o “jornalismo identitário”, extraiu diversas conclusões – todas equivocadas.
1) “Oh! Que novidade histórica!”
Novidade nenhuma: continuidade de tendências verificadas desde o Censo 2000. Há um quarto de século aumenta a proporção de pardos e pretos, enquanto decresce a proporção de brancos.
2) “Agora sim, os brasileiros assumem sua verdadeira identidade.”
Só quem, no século 21, insiste em acreditar nas teorias do “racismo científico” do século 19 ousa mencionar uma “verdadeira” identidade racial. Raças humanas não existem. No plano racial, não há identidade “verdadeira” (ou “falsa”). No censo, as pessoas autodeclaram sua cor da pele. Dele, emana um retrato de como elas se veem – ou querem ser vistas.
3) “Finalmente, a maioria dos brasileiros decidiu declarar-se negra.”
Falso. Uma maioria relativa declarou-se parda – ou seja, misturada. Inexiste no Censo a categoria “negros”, de modo que ninguém declarou-se “negro”. A categoria é uma fabricação estatal-burocrática que soma arbitrariamente os que se descrevem como pardos e pretos. Foi inventada para ofuscar a mestiçagem brasileira, fabricando a imagem de uma nação bicolor. A militância quer que o Brasil seja EUA, ao menos no campo das políticas de raça.
4) “Vitória contra o racismo: os negros identificam-se como o que são de fato.”
Negativo: pardos não se identificam como “negros” (nem como “brancos”). A maioria relativa não cabe na nação bicolor estatal. O crescimento da parcela de pardos e de pretos é uma adaptação das pessoas às regras do jogo.
5) “O crescimento dos negros revela uma tomada de consciência.”
De certo modo, sim: há um cálculo racional em operação. Na metade inicial do século 20, incontáveis americanos negros de pele clara fizeram o “passing”, queimando seus documentos, enterrando o passado e convertendo-se em brancos. Era bem melhor ser branco num país organizado por leis de segregação racial. No Brasil de hoje, o “passing” inverso pode gerar benefícios materiais. As pessoas transitam para dentro da categoria estatal “negros” respondendo a incentivos oficiais (cotas nas universidades e no funcionalismo público) e privados (políticas de “diversidade racial” nas empresas).
POLÍTICAS RACIAIS – Os equívocos elencados não resultam de ignorância. A “maioria negra” cantada em prosa e verso funciona como plataforma para uma nova etapa das políticas raciais.
As políticas de raça têm 20 anos e as cotas raciais nacionais, 10. Fracassaram em seus objetivos alegados (que são distintos de seus objetivos verdadeiros). As desigualdades sociais persistem, assim como a ruína da escola pública. As polícias continuam a barbarizar as periferias e favelas. O encarceramento de pretos e pardos aumentou.
Mas, do ponto de vista da estratégia política, as discriminações efetivas não importam: na sua nova etapa, as políticas raciais destinam-se a facilitar o acesso a cargos no Judiciário, no Executivo e no Congresso para indivíduos da elite econômica e cultural que operam como ativistas identitários.
SERVE COMO ESCADA – O “racismo estrutural”, essa noção tão abrangente quanto difusa, serve como escada. Os pobres, em sua maioria pretos ou pardos, só entram no discurso como pretextos.
“Negros”, a categoria, funciona como arma de extermínio da mestiçagem. Nas políticas de raça, os pardos têm a função de configurar a aparência de uma “maioria negra”. Mas, na hora H, muitos deles são excluídos dos benefícios prometidos.
Ilustração mais recente: a nomeação do autodeclarado pardo Flávio Dino para o STF foi recebida com uma saraivada de críticas do ativismo identitário, que resolveu classificá-lo como branco. Pardos só são “negros” no mundo asséptico das estatísticas oficiais.
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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – Detalhe curioso: o Estadão foi o único jornal a classificar Flávio Dino como “mais um negro no Supremo”. O ministro Nunes Marques também tem um pé na senzala, como dizia FHC, mas foi classificado como branco. (C.N.)