Viver em guerra ainda é uma realidade para muitos países
Mario Sergio Conti
Folha
Foram tantos os rompantes de Trump no debate com Kamala Harris que um deles passou em branco: o mundo marcha para uma Terceira Guerra Mundial, agora nuclear. Deixando de lado seu diagnóstico (uma barafunda chauvinista) e o purgante que receita (votem em mim), ele está certo. Com as guerras na Ucrânia e em Gaza —que não é bem um duelo bélico, mas um morticínio—, o planeta está mais próximo de uma combustão do que quando Trump foi despejado da Casa Branca.
O que não quer dizer que, fosse ele ainda o inquilino, o mundo estaria em paz; muito pelo contrário. A dança macabra à beira do precipício se acelerou. Os conflitos em Gaza e na Ucrânia engolfaram países vizinhos. Provocaram êxodos que desarranjam continentes distantes. Aguçaram o desespero e o extremismo em massa. Incineraram bilhões e bilhões de dólares.
É INEVITÁVEL? – As guerras, por fim, atiçam a crise climática, cujas labaredas apocalípticas ora medram pelo Brasil. Questionados sobre o assunto, Trump e Kamala repetiram que é forçoso queimar mais petróleo e incrementar a economia – aquilo que, precisamente, agrava o colapso ambiental.
Os combates já não horrorizam como antes. As vítimas ficaram incorpóreas, são cifras. O Ministério da Saúde – do Hamas, mas referendado pela ONU – diz que, até ontem, 41.118 pessoas tombaram em Gaza, a maioria mulheres e crianças. Israel não divulga o número dos que massacrou.
Rússia e Ucrânia também ocultam suas baixas de guerra. O New York Times estima que, entre mortos e feridos, são mais de 500 mil nos dois lados. Por que não se fala de tantas vidas perdidas ou traumatizadas para sempre? Porque, como escreveu T.S. Eliot às vésperas da Segunda Guerra Mundial, “a espécie humana não aguenta tamanha realidade”.
NO DIA D – No 6 de junho passado, por exemplo, festejaram-se os 80 anos do desembarque aliado na Normandia. Com os rostos compungidos, Biden, Macron & Cia foram às praias tomadas dos alemães no Dia D. Pois sabe quantos civis o “tapete de bombas” anglo-americano dizimou? Foram 18 mil, fora os desaparecidos. Nem os franceses se lembram deles.
A guerra é o estado natural da humanidade. É assim desde que se formaram os primeiros clãs e depois as tribos, ducados, burgos, nações, impérios e as alianças entre eles. É inviável formular uma teoria geral da guerra, porque cada conflito armado depende de uma história, um lugar e uma situação; dos contendores, dos bens e territórios em disputa.
Talvez então o melhor seja voltar-se para a literatura sobre a guerra que, como se acreditou na época, acabaria com a própria noção de guerra, pois era tão formidável que depois dela o mundo poderia viver em paz para sempre: a Primeira Guerra Mundial.
“TEMPESTADES DE AÇO” – Existe um relato espantoso dela em “Tempestades de Aço”, de Ernst Jünger. Ele era um soldado alemão promovido a lugar-tenente e condecorado com a Ordem do Mérito por bravura – foi ferido 14 vezes. Fora do prelo há dez anos, o livro foi republicado pela Carambaia; Marcelo Backes, autor das notas e do posfácio, revisou sua tradução original.
Sobre o fundo preto, há 5 soldados verdes de brinquedo espalhados entre gotas de lágrima e um rio vermelho. O soldado que está no centro está sentado sobre um joelho e com o braço apoiado no rosto – ele está colocado sobre a página de um livro aberto.
Escrito no calor da hora, “Tempestades de Aço” retrata as mazelas da primeira guerra moderna, a que combinou aviões e tanques com o corpo a corpo sanguinário nas trincheiras. É ainda, na mesma medida, um enaltecimento dos aguerridos guerreiros teutônicos que veicula uma concepção aristocrática da guerra, vista como a alma nacional em ação.
Pode ser visto como uma crítica ao absurdo da guerra e, contraditoriamente, um apelo literário à destruição sádica do inimigo. “Mate o cão a pauladas!”, ordena um major a Jünger, apontando para um soldado inglês; e o escritor, sumário e sinistro, diz que isso “foi desnecessário”.
NACIONALISTA – O autor sustenta que a Alemanha era um país “digno de que se sangrasse e morresse por ele”. Não diz um “ai” contra os comandantes e o imperador, nem quando a derrota é certa. Descreve as atrocidades com um estilo altissonante, à altura da loucura da luta letal, revela a guerra como a pulsão de morte encarnada.
Jünger escreveu “Tempestades de Aço” com 20 anos. Seu estilo opulento se embebia no sangue da expansão imperial. Não era um ingênuo: flertou com o nazismo, do qual veio a se afastar, mas foi protegido por Hitler. Morreu com 102 anos, em 1998. É admirado na França (André Gide o celebrou) e atacado na Alemanha (Thomas Mann o chamou de “playboy gélido do barbarismo”; Walter Benjamin disse que era kitsch e fascista).
Insepultos, os cadáveres da guerra que acabaria com todas as guerras vagam em Gaza e na Ucrânia.
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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – O relançamento de “Tempestades de Aço” coincide com o sucesso de “Nada de Novo no Front Ocidental”, a obra-prima de Erich Maria Remarque, em que um soldado pacifista morre com uma flor na mão, no último dia da Primeira Guerra Mundial. Não há nada mais idiota do que uma guerra. (C.N.)