Ilustração reproduzida do Espaço Vital
Carlos Newton
É impressionante a frieza do ministro Alexandre de Moraes, que vive o momento mais difícil de sua trajetória no Supremo Tribunal Federal. Relator do chamado Inquérito do Fim do Mundo, aquele que não acaba nunca e que se refere a fake news, milícias digitais e mais o que couber no balaio, Moraes já demonstrou que não tem condições de responder às pesadas acusações lançadas contra ele, desde que os jornalistas Glenn Greenwald e Fabio Serapião iniciaram a publicação de matérias sobre graves irregularidades na abertura de investigações no eixo TSE/STF.
Quando explodiu a primeira matéria-bomba, Moraes entrou no desespero e criou uma nota de defesa ardilosa, sem nenhuma base na realidade, mas funcionou. O ministro disse que não havia pedidos de “relatórios sob medida”, porque todos os envolvidos já eram investigados nos inquéritos das fake news ou das milícias digitais, ambos sob sua relatoria no STF.
MAIS MENTIRAS – Moraes tranquilizou os colegas, também asseverou que todos os agravos regimentais (recursos apresentados pelo alvo, Ministério Público ou outra parte do processo) foram levados por ele para análise no plenário do STF, com acompanhamento pela PGR (Procuradoria-Geral da República) de todas as movimentações do processo.
“Todos os documentos oficiais juntados à investigação correndo pela Polícia Federal, todos já eram investigados previamente nos inquéritos já citados, com a Procuradoria acompanhando e todos, repito, todos os agravos regimentais, todos os recursos contra as minhas decisões, inclusive de juntada desses relatórios. Todos que foram impugnados foram mantidos pelo plenário do Supremo Tribunal”, disse Moraes no plenário do STF na semana passada.
Eram mentiras deslavadas, mas Barroso, Gilmar e outros ministros não tinham como duvidar de uma afirmação tão peremptória. Por isso, saíram na defesa do colega, com disposição total, julgando que ele estivesse sendo caluniado. Em nenhum momento passou por suas cabeças que Moraes tivesse “inventando” essa defesa para justificar os excessos que vem cometendo, a pretexto de estar defendendo a democracia.
OUTRAS ACUSAÇÕES – Os jornalistas Gleen Greenwald e Fabio Serapião insistiram na denúncia, e Moraes achava que poderia se livrar das acusações, porque todos os inquéritos tramitam sob sigilo. Assim, os repórteres não teriam prova material, a não ser a gravação dos diálogos, as quais indicam que Moraes fazia exatamente o contrário do que afirma. Ou seja, ele realmente exigia relatórios ilegais sob medida, combinados entre suas equipes no TSE e no Supremo.
Os jornalistas da Folha tinham cartas na manga, porque existem muitas outras provas de que Moraes está mentindo. A principal evidência é o caso do então deputado Homero Marchese, do Republicanos do Paraná. Moraes move um processo em sigilo há quase dois anos contra Marchese, cujas redes sociais foram bloqueadas de forma abusiva e totalmente ilegal.
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O INCRÍVEL CASO DO DEPUTADO MARCHESE
Gleen Greenwald e Fabio Serapião / Folha
O caso teve origem em um sábado, 12 de novembro de 2022, após o fim das eleições. Segundo mensagens a que a Folha teve acesso, naquela noite houve um diálogo entre o juiz auxiliar Airton Vieira, braço direito de Moraes no STF, e o perito Eduardo Tagliaferro, então chefe da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação, órgão do TSE.
Às 22h02 daquele dia, Airton Vieira enviou por meio do aplicativo WhatsApp três arquivos para Tagliaferro relativos a manifestações convocadas contra ministros do STF que participariam, em Nova York, nos dias 14 e 15 daquele mês, de um evento privado promovido pelo Lide, grupo do ex-governador João Doria.
Os arquivos continham um vídeo em que era destacada a localização do hotel onde os ministros do STF se hospedariam e dois posts, um com o endereço do hotel e outro com o anúncio sobre o evento acompanhado da expressão: “Máfia Brasileira”.
PEDIDO DE BLOQUEIO – “Eduardo, por favor, consegue identificar? E bloquear? O Ministro pediu… Obrigado“, escreveu o braço direito de Moraes a Tagliaferro. “Urgente, em razão da data”, acrescentou brevemente.
O assessor do TSE avisou que estava retornando de São Paulo para Brasília e que faria o relatório. Às 23h09, Tagliaferro mandou uma mensagem para Airton Vieira ressaltando o fato de as postagens não terem relação com o processo eleitoral. “Só não sei como bloquear pelo TSE pq não fala nada de eleições“, disse ele. No mesmo minuto, o juiz instrutor respondeu, sem tratar da dúvida, mas perguntando se os autores das postagens tinham sido identificados. Tagliaferro disse ter conseguido identificar “apenas um candidato do Paraná”.
“Entendi. Pode enviar para mim um relatório simples, inclusive dizendo não ter como identificar os outros dois? Bloqueio pelo STF…“, pediu Airton Vieira.
DENÚNCIA ANÔNIMA – Às 23h54, Tagliaferro enviou um relatório. Em vez de registrar oficialmente que o pedido havia sido feito pelo próprio gabinete de Moraes, o documento do TSE afirmou que o material fora recebido de forma anônima e que o relatório tinha sido produzido a pedido de Marco Antônio Vargas, juiz auxiliar de Moraes no TSE.
No momento do pedido do relatório, no entanto, o juiz Vargas estava em um voo. Ele só voltou a responder a mensagens às 23h11, quando é avisado por Tagliaferro: “Estou fazendo um relatório para o STF”.
O pior é que o documento do TSE também foi enviado com um erro sobre a autoria das postagens. Ao analisar as três imagens objeto da demanda, Tagliaferro disse que não tinha conseguido identificar o autor de duas delas, que tratavam das hospedagens dos ministros, e apontou Homero Marchese, então deputado estadual pelo Republicanos do Paraná (hoje no Novo e não mais deputado), como responsável pela terceira imagem.
ERRO FATAL – No entanto, a postagem de Marchese limitava-se a um panfleto de chamado à comunidade brasileira nos EUA, dizendo que os ministros do STF estariam em NY palestrando na Harvard Club — o local do evento havia sido divulgado pelos organizadores no site oficial. Em cima desse card, uma terceira pessoa, não identificada, fez uma montagem com a mensagem de Marchese acrescentando os dizeres: “máfia brasileira”.
No documento, no entanto, Tagliaferro relatou que a montagem era de autoria de Marchese — deputado estadual., advogado e ex-servidor do Tribunal de Contas do Paraná, atuante nas redes sociais e com forte discurso de combate à corrupção.
Oficialmente, o relatório do TSE chegou ao STF aos 8 minutos da madrugada do dia 13 de novembro. A Folha teve acesso ao processo. Com base no relatório montado a pedido, Moraes então determinou o bloqueio integral das páginas de Marchese no Twitter, Facebook e Instagram.
TUDO ERRADO – Segundo o juiz Airton Vieira escreveu no grupo de WhatsApp, a decisão de ofício saiu naquela mesma madrugada. O Ministério Público não foi ouvido e não houve pedido de diligências à Polícia Federal.
Além disso, as três afirmações se chocam com os dados do processo ao qual a Folha teve acesso. O então deputado Homero Marchese não era investigado anteriormente nos inquéritos sob relatoria de Moraes. O ministro também não analisou nem levou ao plenário do STF os agravos regimentais apresentados pelo Twitter, pela Procuradoria-Geral da República pelo próprio Marchesa, alvo das medidas.
O processo mostra que o ministro bloqueou as contas do então deputado com base na identificação equivocada de Tagliaferro. O argumento da decisão é que o então deputado havia divulgado o endereço do hotel em que os ministros ficariam hospedados — dado que não constava no relatório do TSE e que se encontrava nas postagens cujos autores Tagliaferro não conseguira identificar.
MAIS MENTIRAS – “Conforme se verifica, Homero Marchese utiliza as redes sociais para divulgar informações pessoais dos ministros do Supremo Tribunal Federal [localização de hospedagem], o que põe em risco a sua segurança e representa indevido risco para o fundamento do Poder Judiciário“, escreveu o ministro ao determinar os bloqueios.
No seu entendimento, a divulgação poderia configurar os crimes de “incitar, publicamente, a prática de crime” e o de “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito”.
As medidas de bloqueio foram implementadas no mesmo dia 13 de novembro pelas plataformas —que tiveram duas horas para executar a ordem, sob pena de multa diária de R$ 10 mil. O deputado teve seu Instagram bloqueado por quase seis meses. Permaneceu por quase um mês e meio sem Twitter e Facebook.
ERA SOB SIGILO – As certidões do processo mostram que a PGR só teve acesso ao caso no dia 16 de novembro, três dias após a decisão de bloqueio de Moraes. Marchese só teve acesso em 1º de dezembro.
No dia 21 de novembro, a PGR protocolou um agravo regimental (recurso) em que pedia a anulação da decisão e o trancamento da investigação. A então vice-procuradora-geral Lindôra Araújo apontava no recurso o erro na decisão de Moraes, além de afirmar ser ilegal o uso do órgão de combate à desinformação para investigação criminal.
“Assim, ao contrário do que foi consignado na decisão judicial recorrida, não se depreende que o investigado tenha veiculado informações pessoais relacionadas ao local de hospedagem dos ministros do Supremo Tribunal Federal, uma vez que tais dados constam de publicações de autor desconhecido“, escreveu Lindôra.
MORAES NÃO ERRA… – Os recursos da PGR e do ex-deputado não foram analisados por Moraes. No dia 23 de dezembro, em outra decisão monocrática, ele desbloqueou Twitter e Facebook de Marchese. A decisão, porém, não analisou os agravos, que segundo ele estavam prejudicados com a determinação do desbloqueio.
Para dar essa nova determinação, Moraes mencionou um ofício de Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, em que ele solicitava a revogação de bloqueios de contas de deputados federais ordenadas com base na resolução que aumentou o poder de polícia do TSE –embora Marchese nunca tenha ocupado o cargo de deputado federal (foi deputado estadual de 2019 a 2023).
Na decisão, Moraes não se manifestou sobre o bloqueio no Instagram. Segundo a defesa do ex-deputado, esse é o seu principal canal de comunicação. Por esse motivo, Marchese recorreu novamente ao STF em 1º de março. Moraes não analisou o pedido e mandou o caso para a Justiça de primeira instância, sob argumento de que ele não era mais deputado. A prerrogativa de foro especial no STF, porém, alcança deputados federais, não os estaduais.
FIM DOS BLOQUEIOS – O Instagram do agora ex-deputado voltou a ser ativado em 2 de maio, após decisão da Justiça do Paraná. Marchese tomou conhecimento sobre os motivos de bloqueio de suas redes cerca de 15 dias após o fato.
Na ocasião, não houve explicação oficial. Apenas o Twitter afirmou se tratar de decisão judicial. O político entrou na Justiça do Paraná com pedido para que as plataformas reativassem suas redes. Segundo consta no processo, ao ler notícias sobre decisões de Moraes bloqueando bolsonaristas por postagens sobre Nova York, Marchese procurou, então, o gabinete do ministro, por meio do seu advogado. Obteve então a confirmação de que havia sido alvo de Moraes e pediu acesso aos autos.
Nas redes sociais, Marchese fez uma publicação na tarde desta quarta na qual diz que a reportagem “revela que o caso da minha censura não foi apenas julgado pelo ministro Alexandre de Moraes, como também foi criado por ele“, e classifica isso como “ato criminoso“. Ele afirma, em vídeo, que foi “impedido de trabalhar como parlamentar” e se manifestar como cidadão ao ter contas bloqueadas.
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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – O festival de mentiras continua, como se Moraes tivesse sólidos argumentos de defesa. Resta saber se os ministros do Supremo, especialmente Barroso e Gilmar, pretendem continuar repetindo as alegações falaciosas de um ministro que está emporcalhando cada vez mais a imagem de seriedade da Justiça brasileira. Mas quem se interessa? (C.N.)