Moraes usava os subordinados para manipular informações
Fabio Serapião e Glenn Greenwald
Folha
O gabinete de Alexandre de Moraes no STF ordenou por mensagens e de forma não oficial a produção de relatórios pela Justiça Eleitoral para embasar e agravar decisões do próprio ministro contra bolsonaristas no inquérito das fake news no Supremo Tribunal Federal durante e após as eleições de 2022. Diálogos aos quais a reportagem teve acesso mostram como o setor de combate à desinformação do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), presidido à época por Moraes, foi usado como um braço investigativo do gabinete do ministro no Supremo.
As mensagens revelam um fluxo fora do rito envolvendo os dois tribunais, tendo o órgão de combate à desinformação do TSE sido utilizado para investigar e abastecer um inquérito de outro tribunal, o STF, em assuntos relacionados ou não com a eleição daquele ano.
SEIS GIGABYTES – A Folha teve acesso a mais de 6 gigabytes de mensagens e arquivos trocados via WhatsApp por auxiliares de Moraes, entre eles o seu principal assessor no STF, que ocupa até hoje o posto de juiz instrutor (espécie de auxiliar de Moraes no gabinete), e outros integrantes da sua equipe no TSE e no Supremo.
Em alguns momentos das conversas, assessores relataram irritação de Moraes com a demora no atendimento às suas ordens. “Vocês querem que eu faça o laudo?”, consta em uma das reproduções de falas do ministro. “Ele cismou. Quando ele cisma, é uma tragédia”, comentou um dos assessores. “Ele tá bravo agora”, disse outro.
O maior volume de mensagens com pedidos informais – todas no WhatsApp – envolveu o juiz instrutor Airton Vieira, assessor mais próximo de Moraes no STF, e Eduardo Tagliaferro, um perito criminal que à época chefiava a AEED (Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação) do TSE. Tagliaferro deixou o cargo no TSE em maio de 2023, após ser preso sob suspeita de violência doméstica contra a sua esposa, em Caieiras (SP).
TUDO CERTO? – Procurado, o gabinete de Moraes inicialmente não se manifestou. Após a publicação da reportagem, em nota, disse que “todos os procedimentos foram oficiais, regulares e estão devidamente documentados nos inquéritos e investigações em curso no STF, com integral participação da Procuradoria-Geral da República”. Tagliaferro afirmou que não se manifestará, mas que “cumpria todas as ordens que me eram dadas e não me recordo de ter cometido qualquer ilegalidade”.
As mensagens mostram que o juiz Airton Vieira (STF) pedia informalmente via WhatsApp ao funcionário do TSE relatórios específicos contra aliados de Jair Bolsonaro (PL). Esses documentos eram enviados da Justiça Eleitoral para o inquérito das fake news, no STF.
Em nenhum dos casos aos quais a Folha teve acesso havia informação oficial de que esses relatórios tinham sido produzidos a pedido do ministro ou do seu gabinete do STF. Em alguns, aparecia que o relatório era “de ordem” do juiz auxiliar do TSE. Em outros, uma denúncia anônima. As mensagens abrangem o período de agosto de 2022, já durante a campanha eleitoral, a maio de 2023.
SEM HACKER – A Folha obteve o material com fontes que tiveram acesso a dados de um telefone que contém as mensagens, não decorrendo de interceptação ilegal ou acesso hacker. O conjunto de diálogos mostra ao menos duas dezenas de casos em que o gabinete de Moraes no STF solicita de maneira extraoficial a produção de relatórios pelo TSE.
Ao menos parte desses documentos foi usada pelo ministro para embasar medidas criminais contra bolsonaristas, como cancelamento de passaportes, bloqueio de redes sociais e intimações para depoimento à Polícia Federal.
O controverso inquérito das fake news, aberto em março de 2019, tornou-se um dos mais polêmicos em tramitação no Supremo, tendo sido usado por Moraes nos últimos anos para tomar decisões de ofício (sem provocação), sem participação do Ministério Público ou da Polícia Federal.
JORNALISTA MONITORADO – Dois pedidos de monitoramento e produção de relatórios sobre postagens do jornalista Rodrigo Constantino, apoiador de Bolsonaro, mostram como se dava a dinâmica. Um deles ocorreu em 28 de dezembro de 2022, a quatro dias da posse de Lula, quando, em tese, já não havia mais motivo para o TSE atuar.
O juiz auxiliar do gabinete de Moraes no STF pergunta a Tagliaferro, do TSE, se ele pode falar. “Posso sim, posso sim, é por acaso [o caso] do Constantino?”.
Depois desse áudio, os dois iniciam uma conversa sobre um pedido de Moraes para fazer relatórios a partir de publicações das redes de Constantino e do também bolsonarista Paulo Figueiredo, ex-apresentador da Jovem Pan e neto do ex-presidente João Batista Figueiredo, o último governante da ditadura militar. À época, os dois entraram na mira de Moraes porque reverberaram em suas redes sociais ataques à lisura da eleição e a ministros do STF, além de incitar os militares contra o resultado das urnas.
PEDIDO DE MORAES – Depois de Tagliaferro (TSE) encaminhar uma primeira versão do relatório sobre Constantino, o juiz Airton Vieira (STF) manda prints de postagens do jornalista e cobra a alteração do documento para inclusão de mais manifestações. Pelas mensagens, fica claro que o pedido para produção do relatório partiu do próprio Moraes.
“Quem mandou isso aí, exatamente agora, foi o ministro e mandou dizendo: vocês querem que eu faça o laudo? Ele tá assim, ele cismou com isso aí. Como ele está esses dias sem sessão, ele está com tempo para ficar procurando”, diz Airton Vieira em áudio enviado a Tagliaferro às 23h59 daquele dia. “É melhor pôr [as postagens], alterar mais uma vez, aí satisfaz sua excelência”, completa Vieira.
O assessor do TSE então responde, já na madrugada do dia 29 de dezembro, e afirma que o conteúdo do relatório enviado anteriormente já seria suficiente, mas que iria alterar o documento e incluir as postagens indicadas por Moraes por meio do juiz instrutor. “Concordo com você, Eduardo [Tagliaferro]. Se for ficar procurando [postagens], vai encontrar, evidente. Mas como você disse, o que já tem é suficiente. Mas não adianta, ele [Moraes] cismou. Quando ele cisma, é uma tragédia”, responde o juiz Airton Vieira.
DECISÕES SIGILOSAS – Dias depois dessa conversa, em 1º de janeiro de 2023, Airton Vieira manda para Tagliaferro cópia de duas decisões sigilosas de Moraes tomadas dentro do inquérito das fake news produzidas com base no relatório enviado de maneira supostamente espontânea.
“Trata-se de um ofício encaminhado pela Assessoria Especial de Desinformação Núcleo de Inteligência do Tribunal Superior Eleitoral”, diz o início da decisão, sem citar que o material havia sido encomendado em seu nome pelo auxiliar em uma conversa via WhatsApp.
Entre as postagens de Constantino que entraram na mira estavam duas: “O que se passava na cabeça de Gilmar Mendes na festa da impunidade ontem, festejando a nomeação de Lula pelo sistema? Que será o primeiro aqui a ganhar um habeas corpus?”. E a outra “é a primeira vez na história do crime organizado que as vítimas assistem, em tempo real, (sic) a quadrilha se preparando para lhes roubar, conhecem os criminosos, e não podem fazer nada porque a Justiça a quem poderiam recorrer faz parte da quadrilha.”
QUEBRA DE SIGILO – Nas decisões, Moraes ordena a quebra de sigilo bancário de Constantino e Figueiredo, bem como o cancelamento de seus passaportes, bloqueio de suas redes sociais e intimações para que fossem ouvidos pela Polícia Federal.
Cerca de um mês antes, em 22 de novembro de 2022, outro pedido de Moraes sobre Constantino mostra o próprio ministro efetuando as solicitações que chegaram ao órgão de combate à desinformação do TSE. Naquele dia, às 22h49, Airton Vieira manda o print de uma conversa com Moraes em um grupo do WhatsApp chamado Inquéritos. A mensagem mostra o ministro enviando postagens de Constantino, uma delas questionando o fato de o partido de Bolsonaro, o PL, não ter feito um questionamento ao TSE — não fica claro sobre qual tema.
“Peça para o Eduardo analisar as mensagens desse [Constantino] para vermos se dá para bloquear e prever multa”, diz a mensagem de Moraes, cujos prints foram enviados a Eduardo Tagliaferro. “Já recebi” e “Está para derrubada”, responde o assessor do TSE em duas mensagens.
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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – É reportagem para ganhar Prêmio Esso. Mostra que o ministro Moraes manipulava informações entre TSE e Supremo para fortalecer a incriminação de bolsonaristas como se fossem inimigos do regime. É uma situação vergonhosa e dolorosa. Prova que Alexandre de Moraes é um caso patológico, pois não tem equilíbrio para ser juiz nem de futebol na várzea, quanto mais no Supremo. Daqui a pouco a gente publica novas informações sobre as irregularidades cometidas pelo juiz-relator do Inquérito do Fim do Mundo, aquela investigação que não acaba nunca e significa um retrocesso na História do Supremo. (C.N.)