Merval Pereira
O Globo
A democracia, não apenas no Brasil, está passando por momentos tormentosos que prenunciam um futuro inquietante. Em consequência, os Poderes da República ganham tons políticos que não se coadunam com o equilíbrio teoricamente imaginado por seus criadores.
À medida que os Poderes se envolvem com ações políticas que sempre foram consideradas imorais, até ilegais, elas se transformam em normais, e fica-se com a sensação de que trabalham em comum acordo — um acordo político muito semelhante àquele proposto pelo hoje lobista Romero Jucá, que prenunciou um pacto “com o Supremo, com tudo” para “estancar essa sangria”, referindo-se à Operação Lava-Jato.
GOVERNO DISFUNCIONAL – Alguns fatos preocupantes mostram que estamos vivendo não mais numa República, ou quase isso, no limite de um governo disfuncional em que, dependendo do momento, um dos três Poderes se impõe e é acobertado pelos outros dois, o que pode ser indicativo de um regime autoritário à vista.
Está acontecendo a mesma coisa nos Estados Unidos, agravada pelo triste hábito de resolver as pendências políticas à bala. Lá, um juiz achou normal que o ex-presidente Trump levasse para casa documentos secretos do governo e anunciou sua decisão às vésperas da convenção que o indicará como o candidato republicano à Presidência.
Também lá a Suprema Corte deu recentemente uma interpretação mais flexível a uma lei anticorrupção, admitindo que funcionários públicos podem receber presentes ou dar assessoria a empresas.
DEFENDER O FILHO – Aqui, Bolsonaro acha normal ligar para o chefe da Receita Federal para falar sobre um filho que é investigado. O presidente da ocasião pode escolher o secretário da Receita Federal, mas não tem o poder de interferir nas investigações, especialmente para defender um filho. Isso acontece com realezas das antigas, em que a família do rei é intocável, e não é o que a República pede.
Nas realezas modernas, a intocabilidade já está bastante limitada pela ação dos paparazzi, da imprensa livre e da sociedade, cada vez mais atenta aos abusos. A vontade de normalizar qualquer deslize vai longe, na visão de direita ou esquerda.
O presidente Lula acha que pode interferir na Petrobras, que pode indicar políticos aliados para órgãos estatais. Não é o que uma verdadeira democracia pede de seus dirigentes. A tendência de achar que o presidente pode qualquer coisa é anacrônica, fora do que exige uma democracia moderna.
EXORBITÂNCIA – O mesmo acontece com o Supremo Tribunal Federal (STF), que exorbita de suas funções, achando que tem poderes para dirigir as investigações do ponto de vista da maioria eventual naquele momento — sempre uma maioria relativa, dependente da tendência do presidente que nomeia os ministros, entre progressistas, conservadores, de direita ou de esquerda.
Não é possível que os mesmos ministros votem de maneiras distintas sobre o mesmo caso. É preciso um mínimo de coerência para que o cidadão se sinta garantido pela mais alta instância da Justiça brasileira.
Um exemplo inquietante é o caso do ministro Alexandre de Moraes, que, a partir do belo serviço prestado na presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em defesa da democracia, convenceu-se de que é intocável — e não apenas ele.
UMA LAMBANÇA – Uma desavença num aeroporto no exterior com uma família de brasileiros transformou-se em caso de segurança nacional. O encarregado da investigação, que considerou o caso de menor gravidade e o arquivou, foi substituído por outro, que viu na discussão em solo estrangeiro um caso sério, a ponto de o procurador-geral da República ter denunciado por calúnia e injúria os membros da família, com base em “expressões corporais”, pois o vídeo não tem áudio.
Não é aceitável, numa democracia, que se ataque fisicamente uma autoridade, mas também é impensável que uma investigação que já fora encerrada mude de direção sem que tenha surgido fato novo.
O Congresso, que teoricamente representa o povo brasileiro, tem interesses próprios para tratar com urgência, como a anistia aos partidos que desrespeitaram a legislação que eles mesmos aprovaram. Assim la nave va, desgovernada.