Precisamos ler o livro, para melhor entendê-lo
Eliane Cantanhêde
Estadão
Quando Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso se encontram amigável e até carinhosamente, é hora de esquecer as guerras e encrencas de outros tempos e pensar em como a construção da democracia e da Constituição foi poderosa e que pode haver civilidade, parceria e convivência e respeito entre adversários políticos. No caso, dois dos principais líderes contra a ditadura e os maiores presidentes do País pós redemocratização.
É nesse clima, menos negativo, mais animador, que escrevo sobre “Por que a Democracia Brasileira não morreu?”, dos cientistas políticos e professores Marcus André Melo e Carlos Pereira.
TRÊS ADJETIVOS – Corajoso, otimista e desmistificador. Esses três adjetivos definem o livro, que acaba de ser lançado e joga luzes sobre dez anos da política brasileira, desde o impeachment de Dilma Rousseff até a derrota de Jair Bolsonaro.
Na contramão da onda de desqualificação, irritação, agressão e desânimo, os autores nos fazem refletir sobre as turbulências e tirar uma conclusão reconfortante: apesar de todos os pesares, não é que o sistema político brasileiro funciona, e bem?
Diante de graves erros e da enxurrada de críticas ao Congresso, ao Judiciário e ao presidencialismo jabuticaba, a realidade é que as instituições, seus líderes e agentes demonstraram grande capacidade de resistência e souberam usar os instrumentos constitucionais à mão para lutar contra investidas antidemocráticas e, ao fim e ao cabo, a uma tentativa concreta de golpe de Estado. Mequetrefe, é verdade, mas concreta.
ORDEM E EQUILÍBRIO – Num resumo sem spoiler, os autores defendem a tese de que a combinação de presidencialismo com multipartidarismo é complexa, tensa e alvo de críticas, mas, na prática, “gerou ordem e equilíbrio no sistema político”, que gira em torno de um chefe do Executivo com enormes Poderes, inclusive legislar via decretos e medidas provisórias, comandar o orçamento e garantir a aprovação de sua agenda no Congresso.
Todo esse poder, porém, é cercado de atenuantes para melhor equilíbrio institucional. O Legislativo tem ferramentas de negociação, como as emendas parlamentares – mal compreendidas pela opinião pública –, de forma que não seja um mero cumpridor de ordens, uma marionete do Executivo.
E o sistema dispõe de uma rede de controle vigorosa e cada vez mais azeitada e qualificada para estabelecer limites e, eventualmente, punir as ações e os próprios presidentes.
NADA É PERFEITO – Nessa rede de segurança, chamemos assim, o livro cita Judiciário, Ministério Público, tribunais de contas, Polícia Federal e imprensa, todos livres, independentes e combativos, como se tem visto ao longo dos últimos 30 anos.
Nada é perfeito, mas foi com o Judiciário e esse conjunto de instituições, que convivem, se criticam, se vigiam e se complementam, que Dilma caiu depois de perder as condições de governabilidade e Jair Bolsonaro teve de seguidamente recuar em seus arroubos e acabou perdendo a reeleição e a elegibilidade.
Um foco obrigatório é a dificuldade de qualquer presidente, seja de esquerda ou de direita, de montar, manter e lidar com as maiorias num sistema multipartidário inflado, com forças muito heterogêneas, e de usar as ferramentas de equilíbrio de poder, como distribuição de ministérios, cargos e emendas que cristalizam os vínculos dos parlamentares com suas próprias bases.
PULO DO GATO – O fundamental, ou o “pulo do gato” de presidentes e governos para administrar a relação com o Congresso é captar e atuar em sintonia com o que os autores definem como “preferência mediana agregada do Congresso”.
Não adianta um presidente tentar impor uma pauta de esquerda num Legislativo majoritariamente de direita, ou vice-versa. É preciso conhecer, ouvir, convencer consensos.
Apesar de todas as idiossincrasias de Bolsonaro e de suas péssimas relações com Supremo, PF, MP, Receita, Coaf, imprensa e o presidente da Câmara na primeira metade de seu mandato, Rodrigo Maia, a pauta econômica do governo e os programas de mitigação dos efeitos da pandemia nas famílias foram aprovados.
ATUAÇÃO DE LIRA – E o presidente seguinte e atual, Arthur Lira, era, ou é, bolsonarista, ajudou o governo o quanto pôde, mas nunca se comprometeu com ideias delirantes de golpe, liderou a derrota do projeto contra as urnas eletrônicas e foi a primeira grande autoridade a reconhecer a vitória e a legitimidade de Lula.
Há exageros, desvios, corrupção e é inadmissível que o valor das emendas tenha explodido para mais de R$ 50 bilhões e que um senador do Amapá possa destinar emendas para a compra de tratores no Paraná. Mas isso não é culpa do sistema, como a sociedade acredita, mas de quem administra esse sistema. Aliás, como em qualquer outro.
Tão corajoso, desmistificador e otimista, o livro de Marcus André Melo e Carlos Pereira nos brinda com algo tão essencial, mas que anda drasticamente em falta no Brasil: racionalidade. Boa leitura!
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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – Em tradução simultânea, fomos dormir no Brasil, mas quando acordamos, após ler o livro, nos encontramos no melhor dos mundos. Ou seja, é um livro panglossiano, que prestigia Lula ou qualquer outro governante.(C.N.)