
A reconstrução de Gaza pode levar não meses, mas décadas
Pedro do Coutto
O plano de Donald Trump para alcançar primeiro um cessar-fogo e, em seguida, a paz no Oriente Médio representa a mais recente tentativa de romper um ciclo de hostilidade que atravessa gerações. A iniciativa, anunciada em meio a uma das mais longas e devastadoras crises entre Israel e Hamas, conseguiu um primeiro êxito: interromper o fogo e abrir espaço para diálogo.
A reação internacional foi, em geral, positiva. Líderes de diferentes nações reconheceram o valor do gesto, ainda que saibam que silenciar as armas não significa alcançar a paz. A interrupção da violência, nesse contexto, é apenas um ponto de partida – necessário, mas insuficiente – para enfrentar um problema que é, antes de tudo, estrutural, político e histórico.
DISPUTAS – A história da região mostra que cessar-fogos já foram obtidos antes, e quase sempre ruíram diante de disputas territoriais, da ausência de confiança mútua e da falta de um plano duradouro de reconstrução. É esse o segundo desafio do projeto de Trump: transformar o acordo temporário em uma estratégia de reconstrução econômica, política e institucional para Gaza e Cisjordânia.
Segundo estimativas do Banco Mundial e das Nações Unidas, o custo total de reconstrução de Gaza pode ultrapassar 50 bilhões de dólares, e apenas os três primeiros anos demandariam mais de 20 bilhões. Isso envolve não apenas reconstruir prédios e infraestrutura, mas restabelecer o tecido social dilacerado por décadas de guerra, pobreza e deslocamento forçado.
O problema, contudo, não se resume ao dinheiro. É preciso decidir quem reconstruirá, sob quais condições e com que tipo de governança. Os desafios são tão práticos quanto simbólicos. O entulho que cobre Gaza – estimado em dezenas de milhões de toneladas – levará anos para ser removido.
DESCONFIANÇA – A infraestrutura básica, como água, energia e saúde, está em colapso. A cada esforço humanitário, há uma desconfiança política: os palestinos temem que o plano sirva para consolidar o controle israelense; Israel teme que a reconstrução reforce grupos extremistas.
Nesse labirinto de desconfianças, é essencial garantir transparência, supervisão internacional e participação local. Nenhum plano terá legitimidade se ignorar a voz dos palestinos.
Há, no entanto, um precedente histórico que merece ser lembrado. Em 1947, foi um brasileiro – o diplomata Oswaldo Aranha – quem presidiu a Assembleia Geral da ONU responsável por aprovar o plano de partilha da Palestina, que previa a criação de dois Estados: um judeu e outro árabe.
MAPA DO MUNDO – Naquele momento, Aranha conseguiu, com habilidade diplomática, adiar votações, negociar votos e conduzir uma decisão que mudaria o mapa do mundo. Desde então, o Brasil abre todas as assembleias da ONU em homenagem a essa liderança, lembrando que a diplomacia pode, sim, ter papel transformador quando há coragem e equilíbrio.
O desafio de Trump, agora, é provar que um líder pode ir além do gesto simbólico e concretizar uma paz que nem mesmo o século XXI conseguiu construir. Ainda que o plano tenha conseguido apoio inicial, ele enfrenta uma realidade política fragmentada.
O Hamas continua controlando parte de Gaza; a Autoridade Palestina tenta recuperar legitimidade; Israel vive divisões internas e desconfia de qualquer proposta que limite seu poder de segurança. Além disso, atores externos – como Irã, Turquia, Egito e Qatar – têm interesses distintos e, muitas vezes, conflitantes. A paz no Oriente Médio, portanto, nunca depende de dois lados, mas de uma constelação de forças.
CENTRO DA DIPLOMACIA – O mérito de Trump foi recolocar o tema no centro da diplomacia global e reunir apoios improváveis, mas a continuidade do processo exigirá algo raro na política internacional: paciência.
A reconstrução de Gaza e a criação de uma governança legítima podem levar não meses, mas décadas. O cessar-fogo atual é uma conquista, mas frágil como vidro. Qualquer novo ataque, bloqueio ou retaliação pode reacender as chamas. Por isso, o plano precisa de sustentação multilateral e de mecanismos de monitoramento que garantam que os compromissos sejam cumpridos.
É indispensável combinar segurança e reconstrução, justiça e pragmatismo, e entender que o “ideal” de paz absoluta talvez nunca se concretize — mas que é possível construir, aos poucos, uma normalidade possível.
PROCESSO – Trump, ao propor “começar de um ponto”, acerta na percepção de que a paz não surge de um decreto, mas de um processo. Assim como Oswaldo Aranha, em 1947, compreendeu que era preciso dar o primeiro passo, ainda que imperfeito, o atual plano reconhece que não há solução mágica em 24 horas para um conflito que já dura mais de 70 anos.
O que se pode fazer é inaugurar um ciclo, mesmo que longo, de reconstrução, justiça e esperança. No fundo, a paz não nasce de ideais, mas de compromissos — e talvez o maior mérito de Trump, desta vez, seja reconhecer que é possível negociar o impossível.