Charge do Bier (Arquivo Google)
Leonardo Desideri
Gazeta do Povo
A falta de obstáculos à politização da cúpula do Judiciário, cujos abusos seguem incontestados pelo Senado, normalizou no Brasil uma realidade pouco comum anos atrás: membros do Supremo e do Tribunal Superior Eleitoral se sentem confortáveis para escancarar publicamente suas posições políticas.
A tendência atingiu seu ápice na última quarta-feira (12), com o ministro do Supremo Luís Roberto Barroso manifestando explicitamente que atuou, enquanto juiz, contra a ascensão do bolsonarismo. Ante a reação popular, Barroso se desculpou negando a literalidade da fala. “Na verdade, me referia ao extremismo golpista e violento”, afirmou.
TUDO ESCANCARADO – Pedro Moreira, doutor em Filosofia do Direito pela Universidad Autónoma de Madrid, destaca o fato de que Barroso “não deseja preservar nem mesmo a aparência de imparcialidade”.
“O comportamento dele, inclusive estético, é similar ao de um político em comício. Portanto, contraria qualquer princípio de prudência, decoro, independência e imparcialidade, todos previstos no Código de Ética da Magistratura. Em um estado de coisas normal, em que os órgãos de controle se comportassem com independência, e o parlamento com firmeza e dignidade, uma postura como essa seria punível. No Brasil, creio que Barroso não sofrerá nem mesmo um constrangimento acadêmico relevante. Como é um homem importante, amanhã estará dando palestra para juízes”, ironiza.
Para Moreira, todo o contexto em que ocorreu a fala do ministro Barroso é constrangedor. “Primeiro, ele está em um evento ideologicamente orientado. Segundo, tenta responder às vaias de uma turma que ele parece reconhecer como sua. Terceiro, para agradar a turba, acaba reconhecendo o que a esta altura ninguém poderia mais duvidar: Barroso não é um julgador imparcial. E, pelo que pensa e escreve, sequer poderia sê-lo.”
HISTÓRICO FARTO – Esta não é a primeira oportunidade em que Barroso deixa suas opiniões políticas vazarem para o público. O histórico de falas do ministro nesse sentido é farto.
E Barroso não é o único ministro que exibe sem pudor seus posicionamentos. Em fevereiro, reportagem da Gazeta do Povo mostrou como Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Dias Toffoli já explicitaram suas convicções políticas – e, em alguns casos, até partidárias – por meio de discursos e presenças em eventos. A exposição de opiniões toca, muitas vezes, em questões relacionadas a julgamentos que ainda estão tramitando no STF.
No começo de fevereiro, Lewandowski foi a um evento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), onde deixou clara sua simpatia pela organização extremista. Cármen Lúcia já assinou carta que sinalizava opinião favorável à legalização do aborto após uma reunião com um grupo de mulheres politicamente engajadas em pautas da esquerda. Em fevereiro deste ano, Gilmar Mendes afirmou que o Brasil “estava sendo governado por uma gente do porão” até o ano passado.
MARKETING POLÍTICO – A falta de pudor em exibir a politização fica evidente também na recente estratégia de comunicação dos tribunais, que têm usado o marketing político para reforçar na opinião pública as posições que adotam.
Anos atrás, as campanhas publicitárias das cortes superiores do país tinham, em sua grande maioria, um propósito informativo ou educativo e se caracterizavam pela sobriedade formal. Com o envolvimento crescente da cúpula do Judiciário na vida política do país, essa realidade ficou para trás.
Na segunda-feira da semana passada (10), o TSE estreou a campanha “Na Hora da Verdade, a Democracia Fala Mais Alto”, um spot publicitário de 30 segundos que apresenta uma batalha de rappers. Na peça, uma rapper mulher com a palavra “Democracia” estampada em sua blusa derrota um rapper homem que representa a ditadura.
DEMOCRACIA E DITADURA – “Um MC representa a democracia e o outro, a ditadura. A clara superioridade da democracia fica evidenciada nas rimas de seu representante, que conquista a adesão da plateia no final”, descreve no projeto enviado ao TSE a Madre Mia Filmes, produtora responsável pelo spot, que custou R$ 400 mil aos cofres públicos.
Não é difícil associar a campanha com os frequentes discursos em que ministros usam a oposição entre “democracia” e “extremismo” para condenar um amplo espectro de opiniões da direita como “antidemocrático” – justificando inclusive prisões e censura com base nessas categorias.
Na própria diplomação de Lula em dezembro de 2022, Alexandre de Moraes disse que aquele evento atestava “a vitória plena, incontestável da democracia e do Estado de direito contra os ataques antidemocráticos, contra a desinformação e contra o discurso de ódio proferidos por diversos grupos organizados”.
SEMELHANÇA EVIDENTE – A letra da música da propaganda do TSE, aliás, tem semelhanças evidentes com o mantra da liberdade de expressão que figura frequentemente em votos de Alexandre de Moraes.
“Liberdade de expressão não é licença para espalhar mentira, ódio, golpe e desavença”, canta a rapper representante da democracia na peça publicitária, citando Moraes quase literalmente.
Para o advogado especialista em compliance Jorge Derviche Casagrande, o desprezo por um grupo de eleitores em nome da preservação da ordem política desejada pela elite estatal é o contrário do comportamento democrático. “Essa campanha do TSE é uma autodefesa do sistema. Eles estão jogando no lixo o voto das pessoas, a vontade popular, e estão dizendo que isso é democracia”, afirma. “Eles estão fazendo uso dos órgãos oficiais para reescrever a história e tentar promover uma narrativa pró-sistema”, acrescenta.
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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – Excelente análise, enviada por Mário Assis Causanilhas. O Supremo e o TSE tentam limpar suas imagens, mas só conseguirão quando pararem as decisões políticas, com “reinterpretações de leis” segundo o gosto do freguês, digamos assim. Toda decisão de vara ou tribunal tem de ser jurídica, sem influências meramente políticas. (C.N.)