No Brasil, o crime é mas organizado do que as forças policiais
Marcelo Godoy
Estadão
A união de esforços e o compartilhamento de informações são essenciais para enfrentar o crime organizado de forma coordenada e abrangente. Essa sinergia maximiza os recursos públicos, o que fortalece a capacidade de investigação e repressão.
Emas não é isso que acontece quando se trata de combater as grandes facções criminosas, como o PCC, pois a Polícia Civil e a Polícia Federal não conseguem formar uma força-tarefa que possa agir em conjunto.
DISTANCIAMENTO – Existe uma fratura, com o distanciamento entre as cúpulas dos aparelhos de segurança responsáveis pelo combate ao crime organizado no País: a PF, ao combater o crime transnacional, e as polícias do Estado que foi o berço e é a principal base da maior de todas as organizações criminosas: o Primeiro Comando da Capital (PCC).
A falta de coordenação entre as polícias, procuradores e fiscais da Receita Federal gerou situações constrangedoras nos últimos anos.
Por exemplo: no dia 9 de abril, a maior operação da história contra a captura do sistema público de transporte na cidade de São Paulo, viu a Polícia Civil paulista ser excluída da ação.
FIM DA LINHA – A bancada da entrevista coletiva sobre a Operação Fim da Linha reuniu Derrite, o comandante da PM, coronel Cássio de Araújo Freitas, o procurador-geral, a chefe regional da Receita, Márcia Cecília Meng, e até o prefeito Ricardo Nunes em um auditório lotado. Mas não havia ali um único policial civil.
A desconfiança entre os integrantes das instituições provocou o protesto solitário do diretor do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), delegado Fábio Pinheiro Lopes, o Fábio Caipira, que deixou um grupo de WhatsApp que reunia policiais e promotores.
Nos dias seguintes, a Associação dos delegados da Polícia Civil chegou a questionar a legalidade da operação em razão da ausência da Polícia Civil nas investigações.
BRIGAS INTERNAS – Policiais civis acusam o Ministério Público de se apropriar de informações de seus inquéritos para montar as operações enquanto promotores desconfiam que inquéritos e ações da polícia se desenvolvem para se adiantar às suas operações.
O bater de cabeças na área é antigo. Em 2022, ele envolveu a investigação a respeito da empresa de ônibus UPBus e o contador João Muniz Leite. Ele e a mulher eram investigados por terem supostamente movimentado R$ 526 milhões entre 2020 e 2021 em suas contas bancárias, embora Muniz declarasse salário de R$ 26 mil no período.
A coluna teve acesso à íntegra do inquérito n°. 020/2022 da PF sobre o caso. A PF estava trabalhando em conjunto com a promotoria. O delegado pediu a expedição de mandados de busca contra alvos ligados ao contador e ao traficante de drogas Anselmo Santa Fausta, o Cara Preta, e outros investigados.
SORTE DEMAIS – O delegado descobrira que Muniz ganhara 640 prêmios lotéricos. Cara Preta, assassinado em dezembro de 2021, era ainda suspeito de ser um dos donos da UPBus, empresa que foi um dos alvos da Operação Fim da Linha.
Na mesma época, os policiais do Departamento Estadual de Investigações sobre Narcóticos (Denarc), preparavam os últimos detalhes para o lançamento da Operação Ataraxia, que tinha como alvos Muniz, parentes de Cara Preta, a UPBus e outras pessoas ligadas à facção.
A ação foi desencadeada no dia 2 de junho, quando os policiais civis cumpriram 62 mandados de busca e apreensão expedidos pela mesma 1.ª Vara de Crimes Tributários e Financeiros, Organizações Criminosas e Lavagem da capital que examinava o pedido da PF sem que uma polícia soubesse oficialmente do pedido feito pela outra.
PF DESISTE – Os policiais do Denarc apreenderam então celulares, computadores, documentos, dois fuzis, pistolas, revólveres e grande quantidade de munição. E pediram à Justiça o sequestro dos bens dos acusados do caso.
Diante disso, em 21 de junho de 2022, o delegado da PF informou à Justiça que estava desistindo das buscas e do sequestro de bens dos acusados. Pediu ainda que o inquérito enviado fosse incluído no inquérito da Polícia Civil. Muniz só foi ouvido nessa investigação no fim de 2022. Dois anos depois, as investigações contra ele permaneciam sem solução.
Nesse período, conforme mostrou o Estadão, as empresas de ônibus investigadas pela polícia por suspeitas de relação com a facção receberam quase R$ 850 milhões da Prefeitura depois que os inquéritos foram abertos.
RECEBIA REPASSES – Entre junho de 2022 e abril de 2024, só a UPBus contou com cerca de R$ 150 milhões de repasses da Prefeitura mesmo depois de ser alvo da Operação Ataraxia. Foi só depois de ser alvo de outra operação, a Fim da Linha, que a Prefeitura decretou intervenção na empresa para cumprir decisão da Justiça.
Só por esse caso pode-se medir o tamanho da encrenca que é o desencontro e desconfianças entre os doutores. Suspeitas de corrupção, histórias de vazamento de operações e de ligações espúrias de autoridades envenenam o combate ao crime organizado, enfraquecendo o cumprimento da lei.
Mas não só. O desencontro é também burocrático e administrativo.