
Charge do Nani (nanihumor.com)
Fabiano Lana
Estadão
No mundo ideal, ideias e argumentos se combatem com concepções ainda melhores ou contra-argumentos mais eficientes. Você lê ou escuta o que alguém disse ou escreveu e, para rebater, tenta mostrar que ele pode ter se equivocado em fatos, ter entrado em contradições, ter apresentado algumas conclusões que não se fundamentam. Mas isso é apenas uma utopia de civilização iluminista – o que pretendemos ser, mas não somos. Longe disso.
Na prática, ocorre o seguinte, ainda mais no contínuo veloz das redes sociais. Ninguém perde mais seu tempo escasso para desmontar alguma tese. Ou mesmo de ler um texto. Dá trabalho, exige algum tutano e capacidade de articular palavras e pensamentos.
BRIGA DE RUA – O mais prático é transformar o jogo das ideias numa briga de rua. Leia apenas o título e acuse seu interlocutor de má-fé, de sordidez, de estar a serviço de causas inconfessáveis. Abuse de palavras ou expressões de baixo calão. Jogue fora toda sua ira interior, suas frustrações, naquilo que te contrariou. Peça para que o texto seja apagado, sonhe com sua proibição.
A questão é que nenhuma dessas estratégias é suficiente ou mesmo eficiente para diminuir ou derrubar um conjunto de ideias ou visão de mundo.
Neste momento em que o Brasil vive o início do julgamento de Jair Bolsonaro pela tentativa de golpe de Estado, esse tipo de comportamento se exacerba.
SEM ARGUMENTOS – Está claro que ninguém mais leva fé em argumentos. O que vale é a desmoralização, a luta sem fim. Vencer é melhor do que ter razão, já nos dizia o filósofo Arthur Schopenhauer.
Daí que, instigados pelos próprios bolsonaristas, a ordem unida é invocar a tese de que o Judiciário é uma linha auxiliar das forças políticas de esquerda. É manter a conspiração de que nosso sistema eleitoral montou uma fraude para vencer as eleições. Não há espaço para a autorreflexão de que, quem sabe, erros do próprio Bolsonaro podem ter tido como consequência a sua derrota. O que se quer é o confrontamento sem tréguas.
ATAQUE A LULA – “Lula, cachaça, o brasileiro sabe de sua índole e de como você chegou até aqui. Só um imbecil ou um canalha compra esse papo de plano de assassinato. A única pessoa que tentaram matar fui eu, em uma ação de antigo militante do PSOL, seu braço político de primeira hora. Não conseguiram! Esse foi o grande erro de vocês, como admitiu José Dirceu”, escreveu Jair Bolsonaro (ou seu filho Carlos) nas redes sociais.
É uma demonstração de que tipo de sociedade belicosa nossos líderes políticos querem. O problema é que a turba gosta de obedecer, e as consequências visíveis foram as depredações desesperadas do 8/1.
No lado do PT, também há pouco espaço para nuances. Que a punição para os celerados do 8/1 seja a maior possível.
TRAIÇÃO DO PAÍS – Qualquer tipo de ponderação, de comparação, mesmo de reflexão, é considerado estar do lado da ditadura, da truculência, do golpismo. Muitas vezes, estar contra o PT parece ser visto como uma traição ao País. Ser obtuso e maniqueísta é a tendência do momento. Dá cliques, apoio e até votos.
Há momentos em que a sociedade brasileira se parece com matilhas que latem umas para outras. Qualquer frase de Lula é atacada sem piedade pelos bolsonaristas e aplaudida sem críticas pelos petistas.
Qualquer frase de Bolsonaro é atacada sem piedade pelos petistas e aplaudida sem crítica pelos bolsonaristas. Vamos fazer o exercício de inverter as sentenças e associar aos autores errados e ver o resultado?
ATÉ A MORTE… -De maneira merecida ou não, o Brasil chegou ao ponto em que as duas maiores forças políticas desejam o encarceramento do líder adversário. E, talvez, também a morte. Os bolsonaristas querem Lula de volta à cadeia por corrupção, por entenderem que ele foi “descondenado” de maneira arbitrária.
Já o petismo não vê a hora de Bolsonaro estar preso. É por uma visão de justiça ou por vingança? A depender do ódio que se estampa desses desejos é que podemos tirar as conclusões mais assertivas.
É possível que uma sociedade nesse estado de ânimo prospere? Não em harmonia. Mas é preciso pensar que sua visão política sobre o mundo é apenas uma perspectiva, nunca a verdade absoluta. E a pessoa que você odeia pode ter outra perspectiva, não necessariamente é um canalha. Se você não pensa assim, que as visões sobre as coisas são múltiplas e precisamos aceitar até o que odiamos, o conselho é revisar a sua definição de democracia.