
Charge do Laerte (Folha)
Rodrigo Lara Mesquita
Folha
Derrocada da relevância social do jornalismo e explosão da cacofonia gerada pela internet nas últimas décadas, fatos intimamente interligados, nos levaram a uma crise civilizacional da qual temos sido reféns passivos. Esse cenário de terra arrasada, que beneficia poucas e poderosas empresas, virou um solo propício para a desinformação e o surgimento de políticos autoritários em todo o mundo. Restaurar os valores democráticos exigirá resposta enérgica para reimaginar o jornalismo e as plataformas digitas.
Estamos imersos em uma crise histórica de longa duração. Os pilares que sustentaram a democracia liberal do século 20 —representação política, jornalismo profissional, instituições reguladoras, pactos de coesão social— sofrem um processo de desestruturação progressiva.
SURGE INTERNET – A explosão informacional trazida pela internet não produziu mais esclarecimento; ampliou o ruído, fragmentou consensos e corroeu formas tradicionais de mediação. O jornalismo, paralisado em sua arrogância institucional, não soube compreender a emergência do novo ambiente em rede.
As plataformas digitais, ao contrário, não hesitaram: capturaram rapidamente o centro da esfera pública, reconfigurando as formas de circulação de informação, opinião e afeto.
Embora a literatura crítica internacional acumule diagnósticos relevantes sobre a colonização algorítmica e o declínio das instituições intermediárias, é notável — e preocupante — o silêncio generalizado, inclusive no jornalismo, sobre a verdadeira dimensão dessa crise. Esta talvez seja a mais grave omissão pública do nosso tempo.
INCAPAZ DE LIDAR – O que proponho aqui não é apenas um diagnóstico, mas um esforço deliberado de nomear essa dissolução como uma crise estrutural e civilizacional, com a qual o jornalismo tradicional se mostrou, até aqui, incapaz de lidar.
Não relato apenas uma experiência pessoal, mas a trajetória de uma geração que acreditou na função pública do jornalismo e assistiu, perplexa, ao seu esvaziamento como mediador qualificado da opinião pública.
Minha trajetória —do Jornal da Tarde e da Agência Estado à criação da Broadcast e ao diálogo com o MIT Media Lab— revela que o caminho não está na nostalgia nem na resistência passiva, mas na reinvenção ativa do jornalismo como infraestrutura pública de articulação social.
TEMPO SOCIAL – Na virada do milênio, ao mergulhar nas pesquisas do Media Lab, compreendi que não vivíamos apenas uma revolução tecnológica, mas uma profunda e irreversível transformação epistemológica.
Foi Harold Innis, autor de “O Viés da Comunicação” e pai da Escola de Toronto, quem melhor formulou esta chave interpretativa: a forma como uma sociedade se comunica determina sua estrutura de poder.
Ao estudar a transição dos impérios orais para os escritos, dos registros em pedra à imprensa de massa, mostrou como o tempo social é moldado pelos meios de registro e transmissão da informação.
MEIO E MENSAGEM – Mais que isso: o meio técnico dominante molda o próprio ambiente social, delimitando as possibilidades de organização política, econômica e cultural. Marshall McLuhan, seu discípulo mais conhecido, levou essa ideia adiante. Ao afirmar que “o meio é a mensagem”, deslocou o foco do conteúdo para a forma da mediação. Televisão, rádio, jornal —cada meio conforma uma sensibilidade e uma lógica de organização social.
Hoje, a internet, com sua capacidade de retroalimentação em tempo real, constitui um novo sistema nervoso coletivo: um ambiente cognitivo global estruturado por tecnologias que transcendem fronteiras e operam em ritmo contínuo. Mas, pela primeira vez na história, essa infraestrutura técnica está concentrada nas mãos de poucos atores privados, sem mediação pública e sem projeto democrático correspondente.
Mesmo em crise, os jornais ainda exercem influência simbólica —citados por autoridades, lidos por formadores de opinião, referenciados por outras mídias. Mas é uma influência terminal, sem futuro, se não houver reconfiguração estrutural.
PAPEL DE MEDIADOR – O jornalismo precisa deixar de ser apenas um produtor de conteúdos e retomar seu papel como arquitetura informacional: organizador de fluxos, mediador de sentidos, articulador de redes. No século 20, os jornais foram centros de gravidade de comunidades, catalisadores de sociabilidades e pactos sociais. A travessia para o século 21 exige que reaprendam a desempenhar essa função em ambiente digital.
Essa função foi esvaziada não pela obsolescência de sua missão, mas pela incapacidade institucional de compreender e ocupar o novo ambiente em rede.
A internet, concebida nas décadas de 1960 e 1970 como uma infraestrutura descentralizada e resistente ao controle, foi rapidamente capturada por interesses corporativos. Google, Facebook, Amazon e outras empresas surgidas em garagens ocuparam o vácuo deixado por um jornalismo preso à lógica do broadcast, enquanto o mundo passava a se estruturar segundo uma nova lógica em rede.