Lygia Maria
Folha
É temerário deixar que o Estado escolha o que pode ser publicado, já que nunca se sabe qual visão de mundo pode vir a basear a decisão
“Se um homem se deitar com outro homem, ambos praticaram um ato repugnante. Deverão ser mortos e o seu sangue cairá sobre eles.” Essa é apenas uma das passagens da Bíblia que tratam homossexuais de modo degradante.
OBRAS ESQUECIDAS – Estou curiosa para saber quando Flávio Dino, ministro do STF, ordenará que o livro seja retirado de circulação e só possa ser editado sem os trechos preconceituosos.
Pois foi exatamente isso que o magistrado fez com quatro obras jurídicas que estavam esquecidas na biblioteca da Universidade de Londrina. Nelas, alunos acharam discursos contra homossexuais e mulheres e acionaram o Ministério Público. O caso foi parar no STF porque o Tribunal Regional Federal da 4ª Região negou o pedido de banimento dos livros.
O teor das publicações é de fato abjeto, ao tratar a homossexualidade como “loucura psicológica tão devastadora como nos tempos de Hitler” e apoiar a demissão de gays e lésbicas. Os autores também chamam de promíscuas e insensatas as mulheres solteiras que têm vida sexual ativa.
PERDA DE TEMPO – Mas a corte constitucional não deveria tutelar a esfera do debate público, ainda mais com o banimento de livros — medida típica de ditaduras. Os disparates nas obras já são amplamente refutados por pesquisas acadêmicas e leis que garantem os direitos de homossexuais e mulheres.
Ademais, ao contrário da Bíblia, são livros obscuros sem qualquer divulgação digna de nota. Na verdade, foi a decisão de Dino que os tornou conhecidos.
No Brasil, não é só a esquerda que é afeita à censura. Para citar apenas um exemplo, Marcelo Crivella, quando era prefeito do Rio, tentou recolher da Bienal do Livro uma história em quadrinhos que mostrava um beijo gay.
CONTRA A HONRA – Exceto em casos de ataques individuais (como calúnia e difamação), é temerário deixar que o Estado, até por meio do Judiciário, escolha o que pode ser publicado, dado que nunca se sabe qual visão de mundo baseará a decisão.
E, como disse John Stuart Mill, “se toda a humanidade tivesse a mesma opinião, e só uma pessoa fosse contrária, a humanidade não estaria mais justificada a silenciar essa pessoa do que ela, se tivesse o poder, estaria justificada a silenciar a humanidade”.
Concordo. O tema interrupção voluntária da gravidez foi banido do debate público por direita e esquerda, por motivos distintos. Gostaria de pedir às jornalistas e aos homens também que se organizassem para tratar deste tema em suas colunas em sistema de rodízio, garantindo publicações semanais
LIVRE-PENSAR – Amigos da Folha de SP, ironias à parte, a censura se mascara com desculpas variadas, vestindo trajes de virtude, zelo pela ordem, proteção da moral ou, no caso mais recente, dignidade da pessoa humana. Mas a essência é a mesma: controlar o pensamento e restringir a liberdade de expressão.
Quando o Estado ergue as mãos e cerra o punho sobre as prateleiras, retirando de circulação qualquer ideia que considera perigosa, é o próprio cerne do livre pensar que se vê ameaçado.