Cubanos sabem que precisam de ajuda alimentar externa
Ángel Bermúdez Role
BBC News Mundo
A ilha vive uma recessão econômica há vários anos que afeta a produção de alimentos, a disponibilidade de medicamentos, e é acompanhada por uma inflação na casa dos três dígitos. O peso cubano está em constante desvalorização. Há apagões. A economia não tem um aliado internacional que permita um alívio financeiro. Há também protestos sociais e emigração em massa.
O presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel, reconheceu em sua conta no X (antigo Twitter) que “várias pessoas manifestaram insatisfação com a situação do serviço de energia elétrica e de distribuição de alimentos”, mas acusou os inimigos da Revolução de tentarem se aproveitar deste contexto para fins desestabilizadores.
SITUAÇÃO COMPLICADA – Segundo Pavel Vidal, professor de economia da Universidade Javeriana de Cali, na Colômbia, a situação que a ilha atravessa hoje tem algumas semelhanças com a crise dos primeiros anos da década de 1990, logo após o colapso da União Soviética, chamada de Período Especial, que deixou Cuba sem o seu principal apoio político e econômico no exterior.
“São mais atingidos os pensionistas e funcionários do Estado que dependem de uma renda fixa em pesos cubanos que não foi reajustada pela inflação… não há dados oficiais, mas acredito que os números da pobreza são alarmantes. Principalmente no que se refere aos aposentados, cuja situação é agravada pelo envelhecimento da população. Aí existe uma situação muito complicada”, afirma.
Ao mesmo tempo, há cubanos que recebem auxílios em dólares enviados por parentes no exterior. Estas desigualdades entre os diferentes setores da sociedade cubana são uma das razões de a situação atual ser mais dura do que a vivida na década de 1990, com o fim do apoio da União Soviética.
CRISE MAIS GRAVE – O economista Ricardo Torres, pesquisador do Centro de Estudos Latino-Americanos e Latinos da American University, nos EUA, argumenta que é preciso levar em consideração alguns aspectos qualitativos “para compreender o fardo sobre as pessoas, e como a crise pode ser sentida”.
Torres destaca, por exemplo, que o Período Especial foi precedido por uma fase de crescimento econômico, enquanto a atual conjuntura se dá “após quase 30 anos de crise permanente”.
“Nos anos 1990, o país apresentava um certo bem-estar que tinha sido alcançado na década de 1980, tanto em termos de consumo quanto em termos de qualidade e profundidade dos serviços sociais, de educação, de saúde, com conquistas esportivas a nível mundial. E tudo isso em uma sociedade muito mais igualitária em termos de rendimentos do que a que existe agora. Não quer dizer que não havia problemas, mas era definitivamente muito mais igualitária em termos de rendimentos”, aponta.
RETROCESSO BRUTAL – Isso indica que embora a partir de 1994 o PIB tenha começado a crescer novamente, houve muitas áreas da economia, da sociedade e de da população que nunca recuperaram o padrão de vida e os níveis de atividade da década de 1980.
“A infraestrutura de Cuba, construída depois de 1959, estava praticamente recém-construída na década de 1990. Pense nas centrais elétricas, nas estradas. Agora essa situação é muito diferente. As centrais elétricas estão há mais de 30 anos em funcionamento, talvez já excedendo os parâmetros para os quais foram concebidas. Muitas estradas, por exemplo, nunca tiveram manutenção nos últimos 30 anos”, afirma.
“Então, a infraestrutura física está em um estado muito mais lamentável agora, mais deteriorada do que nos anos 1990. Talvez a única infraestrutura que esteja relativamente melhor hoje seja a das telecomunicações, já que certamente se expandiu a disponibilidade de celulares e, inclusive, o acesso à internet.”
ECONOMIA FRACA – Torres acrescenta que a ilha perdeu capacidade produtiva. “Há muito menos usinas açucareiras, muito menos indústrias de manufatura, menos agricultura e pecuária, por exemplo. Há mais hotéis e aeroportos, e alguns deles são mais modernos do que os que existiam na década de 1980, mas o equilíbrio em termos de infraestrutura não é favorável”, destaca.
Há migração em massa e nestas três décadas a ilha perdeu muito capital humano, além do envelhecimento da população.
“Durante o Período Especial, o atendimento hospitalar sofreu, claro, mas nada a ver com a situação que vivemos hoje. O mesmo pode ser dito da educação. Cuba estava com um sistema educacional robusto, com muito capital humano. Isso não é mais verdade. Pelo contrário, tem havido uma emigração em massa de professores bem qualificados que afeta todos os níveis”, diz ele.
FALTAM ITENS BÁSICOS – Além disso, ele afirma que a assistência material que as pessoas podem receber do Estado foi reduzida, não só em termos de medicamentos que podem estar disponíveis num hospital, por exemplo, como também de itens básicos que a população recebe por meio da libreta (caderneta de racionamento), sistema criado para controlar a distribuição destes produtos para a população.
“Embora o governo não divulgue números oficiais a este respeito, sabe-se que os níveis de desigualdade já eram muito altos em 2019. Isso significa que um grupo importante da população chega a esta crise atual com o padrão de vida bastante deteriorado, com carências importantes em termos de moradia, de acesso a serviços sociais. Então, eles chegam com muita desvantagem, e esta crise os atinge duramente. E eles não têm nenhum tipo de recurso ou reserva para enfrentar essa situação”, explica.
ABASTECIMENTO – A situação geral do abastecimento na ilha costuma ser considerada um assunto sensível — e um segredo estratégico
A estes elementos, devemos acrescentar o que os economistas consideram erros nas políticas internas, como a recente “reforma monetária” (uma tentativa fracassada de unificar o câmbio); um conjunto de reformas econômicas parciais e incompletas, como a iniciativa do ex-presidente Raúl Castro de entregar em usufruto as terras improdutivas para os agricultores, destaca Pavel Vidal.
“O usufruto não dá ao agricultor a segurança que ele precisa, porque ele não tem a propriedade da terra. Há milhões de limitações para, por exemplo, erguer construções nessas terras e, além disso, a compra forçada por parte do Estado de uma parte importante da produção a preços ridículos torna a atividade agropecuária financeiramente inviável”, explica.
CRISE MULTISSISTÊMICA – “Trinta anos depois, se tornou uma crise multissistêmica. É uma crise política, social, sanitária e econômica. E todos estes fatores juntos geraram esta tempestade que neste momento se vê nesta explosão social que está acontecendo em diferentes locais do país”, acrescenta, fazendo referência aos protestos que ocorreram na ilha no dia 17 de março.
Torres e Vidal concordam que o problema subjacente é um modelo econômico que “não funciona”.
“A evidência histórica é esmagadora em termos de que esses modelos de economia centralmente planificadas, sobretudo no estilo soviético, não deram resultado em nenhum dos países em que foram adotados. Observe que a própria China e o Vietnã, apesar de ainda terem partidos comunistas no poder, há mais de três décadas reconheceram que este modelo não era funcional, e o abandonaram”, destaca Torres.
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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – Pela primeira vez na História, o governo cubano pediu à ONU ajuda alimentar para combater a fome do povo. A Venezuela, apesar da crise, tenta ajudar, o México, também, e o Brasil já enviou um avião com 80 toneladas de alimentos. Mas é pouco, muito pouco para as reais necessidades do povo. (C.N.)