Vitória fácil de Trump desmoraliza o setor de pesquisas eleitorais
Flávia Barbosa
O Globo
À medida que a madrugada avançava, a eleição presidencial dos EUA foi ficando mais parecida com a de 2016, vencida por Donald Trump contra Hillary Clinton, do que com a de 2020, em que o republicano perdeu a reeleição para Joe Biden. Às 3h, os sinais eram inequívocos. Pouco depois das 4h, confirmou-se o que, desde o início da noite, se desenhava: com a vitória na Pensilvânia, o ex-presidente que dominou o Partido Republicano e radicalizou a política americana, com sua retórica incendiária, divisiva, misógina e xenófoba, voltará à Casa Branca.
E não será um retorno qualquer. Será retumbante. Entre os cenários absolutamente plausíveis para a corrida eleitoral deste ano, sempre houve a possibilidade do chamado landslide_ quando um candidato vence de lavada, especialmente carregando todos ou a maioria dos estados-pêndulo. Donald Trump já venceu 3 dos 7 estados decisivos e lidera nos outros 4, e pode claramente vencê-los todos.
ESMAGANDO – E mais: ele lidera o voto popular por mais de 5 milhões de votos, algo que um republicano não conseguia desde George W. Bush, duas décadas atrás. Seu partido obteve a maioria do Senado e tem grandes chances de obter a maioria na Câmara. Sua performance em cada estado é melhor em 2024 do que em 2020, com avanços de até 10 pontos percentuais em condados-chave. Barba, cabelo, bigode.
Como isso é possível? Muito resume-se ao mais famoso ensinamento político do genial estrategista democrata James Carville: “É a economia, estúpido!”.
Não era segredo para ninguém que a economia era o principal tema a mobilizar os eleitores.
TUDO ERRADO – A insatisfação com o custo de vida, a inflação acima do patamar histórico, a sensação de que as contas não fecham e de que o futuro será pior era gritante entre os americanos, que desaprovam por 56% a 41% a presidência de Joe Biden; e 59% desaprovam sua forma de conduzir a economia.
Para 63% da população, os EUA rumam na direção errada. A lembrança é de uma vida mais confortável sob Donald Trump _ considerado mais apto para lidar com a economia do que Kamala Harris, por uma margem de 6 pontos percentuais.
Isso mesmo com a economia americana sob Joe Biden ter tido uma excelente performance em baixar a inflação herdada da pandemia, em gerar empregos, em perdoar dívidas estudantis, em reduzir o preço dos planos de saúde… Mas simplesmente ninguém sente. E percepção é tudo.
MALDIÇÃO – Kamala Harris simplesmente não conseguiu fugir da maldição da Bidenomics. Afinal, ela é vice-presidente de Biden e parte do pacote. Quanto mais o mapa eleitoral foi sendo preenchido ao longo da noite e da madrugada, mais claro ficava o impacto do bolso nas decisões dos eleitores.
Sistematicamente, áreas mais atingidas pela inflação, preços de aluguel, alimentos, energia e gasolina cobravam votos de Kamala mesmo em regiões onde ela vencia com folga – suas margens, porém, encolheram em relação à votação de Biden, em estado após estado: Virgínia, Geórgia, Pensilvânia, Michigan, Wisconsin, Carolina do Norte.
A economia também serviu de combustível ao engajamento republicano e ao comparecimento às urnas. A identificação de eleitores com o Partido Republicano superou o alinhamento democrata pela primeira vez em décadas. Isso foi acompanhado do registro de mais eleitores republicanos.
VOTAÇÃO ANTECIPADA – Não à toa, os números de votação antecipada dos republicanos foram estrondosos. E o chamado turnout acompanhou, ontem, no dia derradeiro.
Não é a única mudança que a vitória de Trump catalisou nos EUA. De carona na insatisfação com a economia, com a falta de oportunidade, a dificuldade de avançar na escolaridade, notadamente mais forte entre os homens, o ex-presidente conseguiu em 2024 avançar nos votos de latinos, negros e mais jovens, um trio demográfico historicamente fiel aos democratas. Por largas margens. Este avanço se junta a outro observado já em 2016 e 2020, sobre trabalhadores brancos sem diploma universitário.
Juntos, esses movimentos cristalizam uma reconfiguração do voto nos EUA, com uma nova coalizão vencedora e radicalizada. Os “deixados para trás” pela globalização, o avanço tecnológico, o elevado custo de estudar parecem superar agora a coalizão que se alinhava em torno de pautas progressistas concretas: mulheres, latinos, negros.
POPULISMO – Parece que os EUA estão trocando uma coalizão popular por uma populista.
Este realinhamento empurrará ainda mais o Partido Republicano e a direita americana ao extremo, ou seja, a Trump. E forçará os democratas a redesenharem seu projeto de país e a redescobrirem o caminho para comunicá-lo.
Os EUA nunca mais serão os mesmos. Trump já mudou para sempre a América. E os próximos 4 anos podem mudar ainda mais, com reflexos nos quatro cantos do planeta.