Às vezes, não é nada fácil perceber que alguém é mau caráter
Luiz Felipe Pondé
Folha
Almas superficiais, as mais adaptadas à vida social e política —já que a democracia as premia—, diriam que a direita no Brasil deu no bolsonarismo e marçalismo —que alguns tratam como “vírus”, imagine se a direita tratasse elementos da esquerda como “vírus” num argumento tido como parte da inteligência pública!— e a esquerda deu no cu.
No entanto, as coisas não são assim tão simplesmente miseráveis. Elas são, sim, mais sofisticadamente miseráveis.
NATUREZA HUMANA – Hipótese em questão: todas as iniciativas políticas ou religiosas humanas, cada vez mais afins, morrem na praia por uma razão muito simples —a natureza humana.
Os progressistas, sejam eles de escopo socializante, sejam otimistas de mercado, erram num princípio avassalador: o ser humano é, basicamente, mau caráter quando tem a chance de ser, para servir aos seus objetivos. As raras exceções confirmam a tendência universalizante da regra.
E mais: essa tendência inexorável ao mau-caratismo é sofisticada nas suas formas materiais no mundo, isto é, posso ser mau caráter de modo tal que o seja em nome do bem público, em nome de uma causa, em nome de um grupo, em nome de melhoria salarial, em nome das populações mais vulneráveis, em nome da arte, em nome da educação, enfim, até em nome da deusa.
TESE CONCRETA – A história de longa duração comprova essa tese enquanto a tese contrária —a natureza humana tende a ser de bom caráter— só é passível de sustentação na utopia.
E, mesmo quando se tentou realizar historicamente essas utopias, a tendência ao mau-caratismo comportamental se mostrou mais verdadeira empiricamente. Sinto muito, o espelho das almas não mente.
Sei. Muitos estão a dizer que a hipótese aqui descrita não se sustenta porque a natureza humana não existe. Sempre achei esse argumento excepcionalmente fofo quando enunciado por adultos. Mas, antes de deixar claro ao que me refiro como natureza humana, devo lembrar que, mesmo que não existisse, a realidade pura e simples ainda sustentaria a hipótese de que há uma tendência inexorável ao mau-caratismo na espécie, assim o prova de forma definitiva a existência dos advogados e juízes.
DIREITO NECESSÁRIO – Enfim, enquanto existirem advogados e juízes, o ônus é de quem quiser negar essa hipótese. Sei que muitos profissionais da área poderão argumentar que o direito é necessário para a sociedade.
Quem seria louco de negar esse fato? A verdade desse fato, de novo, comprova a tese de que há uma tendência inexorável ao mau-caratismo na espécie.
Há aqueles que dirão que o direito pode estar a favor do bem social —e não apenas da manutenção da ordem, seja ela qual for. A estes eu diria que, seguindo o filósofo Blaise Pascal, do século 17, não fosse pelos salamaleques gestuais e de figurino do mundo do direito, todo mundo perceberia o vazio de qualquer vínculo das leis com o bem.
CRENÇA DE INGÊNUOS – Aliás, dizem que este não passa de uma abstração delirante do platonismo. E de uma crença de almas de pessoas ingênuas.
Pessoalmente, discordo de modo suave dessa hipótese que nega a existência de alguma forma de bem. Por exemplo, o filme dinamarquês “Bastardo”, com Mads Mikkelsen, apresenta, no meu entendimento, seguindo a evolução dramática do personagem principal representado pelo ator aqui citado, uma forma muito clara do que seria um tipo de comportamento moralmente consistente na vida de uma pessoa, entre a miséria repetitiva do mundo, mesmo que de formas variadas ao longo do tempo e do espaço.
Mais uma vez, o cinema dinamarquês, assim como o argentino, salva quem aprecia filmes não idiotamente ideológicos, melosos ou simplesmente estúpidos.
NATUREZA HUMANA – Mas devo dizer o que estou pressupondo como “natureza humana”. Generosamente, apresento aqui o que quero dizer por tal expressão, foco de tanto vespeiro ao longo da história da filosofia e das ciências humanas.
Não entendo por natureza humana nenhuma herança do pecado original, nenhuma estrutura biológica selecionada ao longo da evolução da espécie ou nenhuma forma pessimista de estrutura psíquica imutável. Poderia, sim, sustentar tais hipóteses, mas não seria este o momento, nem preciso fazê-lo para manter a hipótese aqui citada como sendo “a natureza humana tende inexoravelmente ao mau-caratismo” —já disse que a existência pura e simples dos advogados e juízes são uma prova incontestável dessa hipótese.
Por natureza humana, entendo o seguinte: dadas certas condições a priori que se repetem, se repetirão certos comportamentos. Você já disputou um apartamento na Praia Grande com irmãos e primos? Já viu alguém disputando uma eleição?
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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – Sensacional texto de Pondé. Fica comprovada a tese de que, quando não fala de política, Pondé faz as melhores análises políticas da espécie humana. Ave, Pondé reúna as crônicas e solte uns livros… (C.N.)