Bernardo Mello Franco
O Globo
A um mês de subir a rampa do Planalto, Ernesto Geisel recebeu seu futuro ministro do Exército, Dale Coutinho, para uma conversa no Rio. Os dois generais começaram tratando de amenidades. Depois chegaram ao que interessava: a repressão à esquerda armada, que havia chegado ao ápice no governo Emílio Médici.
— O negócio melhorou muito. Agora, melhorou, aqui entre nós, foi quando nós começamos a matar. Começamos a matar — sublinhou Coutinho.
— Porque antigamente você prendia o sujeito e ia lá para fora — emendou Geisel. — Ô Coutinho, esse troço de matar é uma barbaridade, mas acho que tem que ser — prosseguiu.
REGIME MATADOR – O diálogo, gravado em 16 de fevereiro de 1974, mostra como a ditadura militar transformou o extermínio de presos políticos em política de Estado. A conversa foi revelada pelo jornalista Elio Gaspari no livro “A ditadura derrotada”, de 2003. Vinte e um anos depois, o público poderá ouvi-la pela primeira vez em “A ditadura recontada: As vozes do golpe”, série original do Globoplay produzida pela CBN.
O podcast é baseado nos cinco volumes em que Gaspari narra a ascensão e o ocaso do regime dos generais. Para que a história pudesse ser contada em áudio, o colunista do Globo abriu seu valioso acervo, com mais de 300 horas de gravações inéditas.
Nas fitas, Geisel revela segredos da caserna, admite a tortura nos porões e fala sem reservas sobre os outros presidentes da ditadura. Castello Branco, seu aliado, é descrito como “corcunda”, “metido a literato” e “aluno mediano”. Costa e Silva, seu desafeto, desponta como “preguiçoso” e “doente”.
MÉDICI, O PREFERIDO – O general Médici, que chefiou o período mais brutal da repressão, é quem aparece melhor na fita. — Ele foi o único sujeito capaz de levar a revolução para o povo — elogia Geisel.
Referia-se à popularidade do antecessor, que estimulou o ufanismo, colheu os louros do “milagre brasileiro” e se beneficiou da censura à imprensa.
O primeiro capítulo da série estreou nesta quinta-feira nas principais plataformas de áudio. Trata da conspiração que culminou no golpe de 1964 e inaugurou um longo período de 21 anos de ditadura. A história é narrada nas vozes dos vencedores, como o governador Carlos Lacerda, e dos vencidos, como o presidente deposto João Goulart.
GOLPE DE ARAQUE – O episódio mostra que os militares se uniram para derrubar o governo, mas não combinaram sequer a data em que dariam o golpe. A ação foi precipitada pelo general Olympio Mourão Filho, que comandava uma guarnição modesta em Juiz de Fora. Ele deu as ordens pelo telefone, vestiu um roupão de seda vermelho e se recolheu para tirar uma sesta.
— Creio ter sido o único homem do mundo que desencadeou uma revolução de pijama — gabou-se, tempos depois.
A quartelada deu as primeiras pistas de que os generais não estavam tão organizados quanto gostariam de parecer.
— Eles participaram da deposição do Jango em nome do combate à esquerda e da disciplina militar. No dia da queda do Jango, essa disciplina começou a ser violentada — constata Gaspari, numa de suas participações no podcast.
O GRANDE IRMÃO – O jornalista também analisa a participação dos EUA no complô. Áudios liberados pela Casa Branca mostram que a hipótese de apoiar um golpe no Brasil já era cogitada desde julho de 1962. O presidente John Kennedy, que seria assassinado no ano seguinte, discutiu o tema duas vezes com o embaixador Lincoln Gordon.
— A participação dos americanos no golpe está envolvida numa névoa. Uma coisa é certa: o golpe prevaleceu sem a participação de um único militar americano. Agora, os americanos tinham interesse no golpe? Sem a menor dúvida — diz Gaspari, que classifica o 31 de março como um “acontecimento brasileiro”.
— O Lincoln Gordon é um dos personagens mais trágicos desses dias. Ele carregou pela vida toda a marca da participação no golpe. Morreu em 2009, aos 96 anos. E, no memorial fúnebre, a filha criticou sua participação no golpe no Brasil — acrescenta.
DITADURA FEROZ – Instalados no governo, os militares rasgaram a promessa de devolver o poder aos civis.
Cassaram mandatos, extinguiram os partidos políticos e sufocaram as liberdades civis com a edição do AI-5, que fechou o Congresso e impôs a censura prévia. Sem eleições diretas, os presidentes passaram a ser escolhidos em reuniões fechadas nos quartéis.
— Não existe um único documento que mostre de onde saiu a maioria para eleger o Médici. Ou seja: o povo não sabe votar, mas os generais também não — ironiza Gaspari.
ABERTURA LENTA – Empossado dez anos depois do golpe, Geisel deu a partida no lento processo de abertura, que só terminaria com a eleição indireta de Tancredo Neves, em 1985.
Em “A ditadura recontada”, Gaspari resume sua visão do que teria levado um dos arquitetos da ditadura a iniciar seu desmonte:
— O que o Geisel queria era acabar com a bagunça. Ele não cansava de repetir que não foi movido por vocação democrática. Era contra eleição direta para presidente e achava que o Congresso não deveria se meter no Orçamento. Agora, bagunça no quartel, de jeito nenhum.
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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – É isso que vai ficar na História, graças ao colossal trabalho de Elio Gaspari, não a versão disparatada que os clubes militares divulgaram essa semana, dando os militares golpistas de 64 como heróis. Um dia, os militares entenderão que a democracia é o único caminho. Mas isso ainda vai demorar muito. Basta ver os exemplos da Nicarágua, Cuba, Venezuela, China, Coreia do Norte e Rússia, sem falar em Afeganistão, Myanmar, Guiné Equatorial, Arábia Saudita e outros 36 países. Com todo respeito ao canídeo, melhor amigo do homem, ainda vivemos num mundo cão. (C.N.)