Ilustração de Bruna Barros (Folha)
Mario Sergio Conti
Folha
Maylis de Kérangal é uma escritora francesa de 56 anos. Foi traduzida e publicada em vários países europeus, inclusive Portugal, mas não no Brasil. Ganhou um monte de prêmios e teve dois livros adaptados para o cinema.
Ela não tem o prestígio de Annie Ernaux nem a popularidade de Michel Houellebecq. Sua sensibilidade, densa e vasta, faz com que esteja mais próxima dela do que dele, um profissional da provocação.
Seu último livro, “Un Archipel”, um arquipélago, é uma seleta de ensaios e relatos. Os escritos são ilhas de um arquipélago. Têm a mesma origem vulcânica e compartilham a língua, mas são fruto de histórias diferentes. “Organizam uma forma; revelam uma unidade”, escreve ela.
As ilhas falam umas às outras. Recorrem à crítica literária para buscar a coesão primordial de escritos que o tempo e a vida apartaram. A ilha maior, mais populosa, é um conto de 50 páginas, “Rouge”, vermelho, para cujo porto convergem as trocas entre os textos.
Maylis de Kérangal leu “Rouge” em público no ano passado e o pôs na internet (de graça), onde está também a versão escrita (paga). O conto condensa percepções, raciocínios e sentimentos fugazes, até mesmo inefáveis, e os sedimenta numa prosa artística. Por fazer isso com engenho, “Rouge” é alta literatura.
Ele se passa numa manhã de domingo no fim dos anos 1980, o tempo “cintilante e desencantado” de “Reagan e Madonna, de Thatcher e ‘Uma Secretária de Futuro’”, filme de sucesso na época. A protagonista é uma provinciana de 20 anos que estuda e trabalha em Paris.
Ela pega o metrô, se perde, toma ônibus, táxi e chega esbaforida para o trabalho do dia: ser hostess no hipódromo de Longchamp, no Bois de Boulogne. As frases, atulhadas de coisas e lugares, expõem tanto a aflição de ir ao trampo como seu cotidiano assoberbado.
LUGAR NO MUNDO – Sublinhada, uma expressão resume o objetivo do galope frenético: “encontrar seu lugar no mundo”. É o local flexível e nebuloso onde a moça é encimada, por um dia, pelo halo dúbio de recepcionista de luxo. Ela topa ali com o rubro título do conto —o tailleur que deve vestir é vermelho.
Equilibrando-se em saltos altíssimos, ela é um esguio bibelô que entrega folhetos no paddock, orienta e sorri, sobretudo sorri. O batente não é tranquilo. Uma colega é assediada com brutalidade por um marmanjo, e a chefe delas aparece —para lhes dar uma bronca.
A narradora vai parar no saguão de apostas, onde viciados arriscam o que têm e o que não têm. Os nomes dos cavalos de um páreo referem-se de raspão ao conteúdo de “Rouge”: Meu Desejo Não Tem Fim, Bumerangue, Stormy Weather, Epopeia de Bocage, C’est la Vie!, Black Mojito e Vitória do Proletariado.
FAZ UMA APOSTA – Na louca, a jovem aposta em Vitória do Proletariado, cujo jóquei, bem a propósito, veste blusa vermelha, a cor da revolução socialista. Um rapaz lhe explica que não se arrisca tudo num cavalo só, ainda mais num azarão nervoso como Vitória do Proletariado. Ela mantém a aposta.
É chamada para servir na tribuna dos bacanas e se vê numa cabine indevassável com um tipo que veste paletó feito à mão, canapés amenos, lambris, adornos dourados, madames emperiquitadas, Moët & Chandon a rodo. Ela bebe, se farta, relaxa, fica zonza.
Começa o páreo no qual pôs todas as fichas no vermelho de Vitória do Proletariado — e o grã-fino no puro-sangue Black Mojito. A cena de Maylis de Kérangal está à altura das corridas de “Naná”, de Zola, “Anna Kariênina”, de Tolstói —e de “Narrar ou Descrever?”, de Lukács, que as analisou.
VERMELHO E NEGRO – A cena combina a descrição embolada de um locutor de turfe com a narração imersa na ação da escritora. A poucos metros do fim, o vermelho e o negro —que ecoam o título de um romance de Stendhal— estão emparelhados. Ruínas da utopia competem com cacos da decadência.
E cruzam o disco final!
Será preciso aguardar o veredito do olho mecânico para ver quem venceu, se o rubro pangaré da luta de classes ou o drinque negro dos tempos que correm. O burguês de paletó diz à trabalhadora de salto alto: “Você tem instinto, ‘mademoiselle’, mas, hélas, terá de esperar um pouco mais pela vitória do proletariado” —agora em minúsculas.
Demitida por se exceder, a moça encontra o cara que a aconselhou a desconfiar de Vitória do Proletariado. Ele lhe diz que o cavalo voltará a correr em três semanas — e aí, quem sabe? Oferece-lhe carona na moto e ela aceita. Ele lhe estende um capacete vermelho. O manto negro da noite cai sobre o Bois de Boulogne.